Análise da Obra Quincas Borba, de Machado de Assis

Análise da Obra Quincas Borba, de Machado de Assis

Teoria do Humanitas: análise da Obra Quincas Borba, de Machado de Assis

 

Luciana Carvalho dos Reis1

Luciana Fim Grancieri2

 

           Por que esse nome? É difícil de saber, pois no livro não há apenas um Quincas Homem e filósofo, mas também o Quincas cachorro, que foi herdado por Rubião. Na verdade Quincas Borba homem morreu no começo do livro e o personagem que dura até o fim da história é o cachorro, mas o livro todo se passa para contar a história da teoria do Humanitas, desenvolvida pelo filósofo Quincas quando ainda estava vivo, a teoria afirma que “O mais forte sempre sobrevive”.

            Quincas Borba é um livro considerado Realista, mas com traços marcantes românticos, pois Rubião declara incessantemente seu amor por Sofia e a idealiza, mas ao mesmo tempo a deseja como mulher, e as falcatruas do casal Palha que começam como amigos de Rubião e terminam como enganadores fazem com que ele empobreça e enlouqueça. O mais forte sobrevive, e esse não foi Rubião.

            Machado conversa com o leitor e o convida à leitura, retrata a história por volta da segunda metade do século XIX em um momento de profundas transformações na sociedade da época, e que na obra traz um tema universal, os vilões e enganadores, como o caso do casal Palha. São os mesmos vilões de hoje e em qualquer parte do mundo. Críticas são feitas a todo momento em relação a ingenuidade de Rubião, com relação ao casal Palha e a falsidade com que Cristiano extraí cada vez mais dinheiro do mineiro. Outro ponto interessante são os personagens em transição, o próprio Quincas Borba aparece no livro memórias póstumas de Brás Cubas, onde sua morte é narrada e se passa na casa de seu amigo Brás.

            A história é narrada em terceira pessoa e começa com Rubião em um flash back, lembrando que era um simples professor e agora um grande capitalista, como pano de fundo desse início de história temos a cidadezinha de Barbacena, também conhecida como a terra dos loucos, devido ao hospício que existia na época. Rubião até agora para nós transmitia uma imagem de moço puro e ingênuo, portanto quando percebe que a única forma de herdar a herança do amigo Quincas Borba era adotar seu cachorro. Feito isso, nosso herói se dirige ao Rio de Janeiro encontrando o casal Palha em um dos vagões do trem. O casal o ajuda a se acomodar na cidade maravilhosa, já que o rapaz do interior não conhecia nada na cidade carioca.

            Então, Rubião passa a residir em Botafogo, bairro nobre do Rio, e é convidado para um jantar na casa do casal Cristiano e Sofia Palha, o convite foi feito através de uma carta acompanhada por um cesta de morangos. Após o jantar, Rubião é convidado por Sofia a dar uma volta no jardim, e lá ele declara seu amor pela jovem, convidando-a a olhar todas as noites para o cruzeiro como prova de amor, pois ele também iria fazer o mesmo de sua casa para lembrar-se dela. Sofia ignora os galanteios e declarações do mineiro por ser casada e em respeito ao seu marido, mas quando conta a Cristiano o fato ocorrido no jardim, ele a incentiva a dar cada vez mais esperanças falsas a Rubião, para poder se aproveitar cada vez mais de sua fortuna. Mesmo não aceitando o que o marido lhe propõe, acaba cedendo por ser sua esposa e submissa ao marido, as famílias no século XIX eram patriarcais, devendo obediência ao seu chefe, no caso da história, o marido.

            A situação financeira do casal melhora rapidamente e aos poucos Rubião apaixonado acaba ficando louco, se considerando um imperador. Insinua uma suposta traição entre Sofia e Carlos Maria, mas ela em momento algum traí Cristiano. Entretanto, o estado mental de Rubião se agrava, passa a visualizar pessoas inexistentes, corta seus cabelos e manda fazer sua barba parecida com o imperador Luís Napoleão. Pobre, é internado em uma casa de saúde e durante uma tempestade, reaparece em Barbacena com seu cachorro Quincas Borba, é amparado por sua comadre Angélica, mas morre pronunciando a frase: “Guardem minha coroa! Aos vencedores...” Na verdade, a frase completa seria: “Aos vencedores as batatas”! dita por Quincas Borba no início do livro, se referindo a teoria do Humanistas e por Rubião quando soube que herdou a herança de seu amigo. Seu cachorro Quincas morre três dias após a morte de Rubião.

Em Quincas Borba, a crítica ao comportamento humano é evidente. Agindo para satisfazer seus interesses, o homem se mostra animal ao extremo. Enquanto isso o cão, solidário e fiel, esbanja afetividade e apreço. Da análise da natureza humana resta o questionamento: o homem é desprezível por sua natureza animal ou por ser humano demasiadamente humano?

Entre as influências filosóficas sofridas por Machado de Assis, é evidente a de Arthur Schopenhauer. Por meio de um sistema filosófico – o Humanitismo – posto na boca de um louco, o autor de Quincas Borba satiriza a ideia da existência do “melhor mundo possível” e penetra no pensamento do filósofo alemão, que acreditava que “o universo é vontade, cega, obscura e irracional vontade de viver” (Merquior: 1977, 171). Segundo Schopenhauer, o mundo é mera representação. Nessa há dois polos inseparáveis: o objeto que se dá no tempo e no espaço; e o sujeito que se constitui a partir da consciência do mundo. Para o filósofo alemão, o homem consciente de si percebe que é constituído pela vontade, formada por seus interesses e paixões. A vontade seria a coisa-em-si.

A vontade não é uma manifestação racional. Na verdade, é uma manifestação impulsiva que visa à preservação da espécie. Para o filósofo, todo ser deseja perpetuar-se. Como a vontade nunca será satisfeita – pois quando uma é satisfeita, outra surge –, o mundo é marcado pela insatisfação, pela dor. O único momento de prazer é a supressão da dor, que, contudo, é evanescente. A afirmação e a negação da vontade são fundamentais para a definição do homem. Afirmar a vontade é imanente à natureza humana, fazendo saltar aos olhos seu lado cruel, egoísta e mal. Para o pensador, negar a vontade seria um ato de santidade, uma vez que o homem agiria contra sua natureza. Schopenhauer é pessimista. Sua filosofia versa sobre a oscilação do homem entre a dor e o tédio. O que aproximaria o seu pensamento do sistema filosófico que tem por propósito a extinção da dor? “A frase faceira”. Debaixo dos signos escritos, Machado demonstra todo o seu descontentamento com a sociedade e deixa patente seu pessimismo.

Nossa análise do sistema filosófico de Quincas Borba se dá a partir do ponto de vista que enxerga o ser humano como vítima e agente da vontade. Pensamos o Humanitismo, desde sua criação nas Memórias, como a manifestação do ego e da vontade de viver. A saciação da vontade geralmente acontece de modo egoísta, algo que a nova filosofia permite, devido ao otimismo que há quando da observação do mundo. Apresentado a Brás Cubas por Quincas, humanitas resolve os problemas de qualquer sociedade. A ideologia do sistema é a extinção da dor a qualquer custo. Todos os atos humanos são justificados desde que atendam à resolução de sua vontade. Não há uma preocupação com o coletivo; há apenas a realização pessoal. O que para muitos se configura como egoísmo, para o filósofo não passa da satisfação de uma necessidade, da vontade de viver. Essa satisfação do ego implica nas realizações do desejo. O Humanitismo se apresenta, então, como a doutrina satânica do conto “A igreja do diabo”, onde tudo é plenamente possível. Distanciando-se da concepção cristã do sacrifício e da dor, o Borbismo é um belo palco para a manifestação da vontade humana. Nele o homem se mostra por completo, tendo como único empecilho o não-nascimento, encarado pelo sistema positivista como a única desgraça. O Humanitismo se compara a um credo novo, da felicidade.

Nesta igreja não há aventuras fáceis, nem quedas, nem tristezas, nem alegrias pueris. O amor, por exemplo, é um sacerdócio, a reprodução um ritual. Como a vida é o maior benefício do universo, e não há mendigo que não prefira a miséria à morte (o que é um delicioso influxo de Humanitas), segue-se que a transmissão da vida, longe de ser uma ocasião de galanteio, é a hora suprema da missa espiritual. Porquanto, verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer (Assis: 1965, 164).

A partir da observação do comportamento humano e cansado de sua desorganização, o diabo resolve fundamentar uma religião. O demônio depreende o quanto é custoso à humanidade anular-se para que o outro cresça. A par da dificuldade humana, libera os indivíduos para cometerem todo tipo de falcatrua ou injustiça, de modo especial se for para a satisfação da sua vontade. Na seita diabólica, o homem satisfaz seus desejos livremente. Porém, a vontade de viver não é injusta. Saciá-la não é ruim. Ela só passa a ter uma conotação negativa quando intervém na vontade alheia, suprimindo-a. Dessa forma a equivalência entre humanitas e vontade é plena, pois o interesse de uma personagem machadiana sempre cala o interesse das outras. Sendo assim, o Humanitismo é a doutrina da injustiça:

Recordemos a nossa explicação da palavra injustiça, o que queremos dizer é que ele (o homem) não se contenta em afirmar a vontade de viver, tal como ela se manifesta no seu corpo, mas leva esta afirmação até negar a vontade enquanto ela aparece em outros indivíduos; e a prova é que ele tenta sujeitar-lhes as forças à sua própria vontade, e suprir-lhes a existência desde que elas constituam um obstáculo às pretensões desta sua vontade (Schopenhauer: 2007, 381).

            Os romances machadianos são permeados por injustiças. Em sua primeira fase, há um desarranjo entre as protagonistas e o clã a que pretensamente pertenciam. Guiomar e Helena são inteligentes e espertas, o que não casa com a dependência econômica em relação à família a que são agregadas. “Por que bonita, se coxa?” é a pergunta a ser feita. Na fase madura, o injusto desarranjo se transfigura em armações, farsas, trapaças e truques. Enfim, um plano onde reinam as práticas injustas. Em Quincas Borba, as injustiças são inúmeras. Ressaltamos o abandono da sociedade que Cristiano Palha mantinha com Rubião. Depois de satisfazer sua vontade e sentir-se seguro, uma vez que já era comerciante próspero, Palha descarta a parceria com o professor, que já estava doente. O fato de Cristiano ter lesado Rubião financeiramente já seria uma injustiça, diante do estado demente do professor, mostra-se uma injustiça ainda maior.

Rubião (...) quis abraçar o Palha. Este apertou-lhe a mão satisfeitíssimo; ia ver-se livre de um sócio, cuja prodigalidade crescente podia trazer-lhe algum perigo. A casa estava sólida; era fácil entregar ao Rubião a parte que lhe pertencesse, menos as dívidas pessoais e anteriores. Restavam ainda algumas daquelas que o Palha confessou à mulher, na noite de Santa Teresa, cap. L (p. 161).

Para muitos críticos, o Humanitismo é uma pura e simples sátira do Humanismo ou de outras correntes filosóficas do século XIX, como o Positivismo ou o Evolucionismo darwinista O Humanitismo é uma análise do visto, do real sensível. Soa, às avessas, como uma manifestação do desprezo pela defeituosa natureza humana, que para Machado, como para Montaigne, era “apenas resultado da simples constatação de uma realidade” (Coutinho: 1959, 82). Realidade que é repensada e recriada por Machado. Ao explicar sua teoria a Cubas, Quincas Borba cria uma alegoria a partir do frango que come. Questiona: que importa o processo de produção dos alimentos, quando os temos para comer? A satisfação do eu nada tem a ver com a dor do outro. Em suma, a alegoria tem por tema central o sofrimento alheio, que existe “com o único fim de dar mate ao meu apetite”. Machado demonstrou o pior do humano e fez aparecer todo o egoísmo. Em suas obras, fica clara sua visão do comportamento do homem. Para o autor, “todos querem tudo para si, todos querem possuir tudo, pelo menos governar tudo; e tudo que se lhes opõe, eles quereriam poder aniquilá-lo” (Schopenhauer: 2007, 348).

Brás Cubas é o livro-marco da passagem do Machadinho ao grande Machado. A mudança ocorre tanto no plano formal quanto no conteúdo. O discípulo de Quincas Borba aprendeu a lição dada. Toda a narrativa de suas memórias é análoga ao Borbismo. Desde a idéia do emplasto Brás Cubas – cujo fim era dar nome ao criador e não alívio às dores alheias – até o episódio em que tem sua vida salva por um homem comum, e reflete sobre a recompensa que daria àquele. O teor do livro é a filosofia do doido de Barbacena. A importância do Humanitismo é tão grande em Brás Cubas que dá origem a Quincas Borba. Acreditamos que, não satisfeito com o resultado obtido com a explanação e divulgação da doutrina de sua personagem, Machado abre, em seu projeto estético, espaço para um livro que é uma súmula daquele sistema. No segundo livro da maturidade, as ações de todas as personagens – da principal às periféricas – são movidas por puro e simples egoísmo. Sempre preponderam os interesses pessoais. Nesse sentido apenas uma personagem destoa das demais: Dona Fernanda. Contudo, se suas ações são frutos da bondade, essa persona é uma exceção que ratifica a regra. Quincas Borba explica a essência de sua teoria a Rubião, seu amigo-criado. Dá- lhe a história da morte de sua avó como exemplo. A senhora morreu atropelada por uma sege que seguia em alta velocidade.        Essa tragédia é explicada pelo filósofo como um ato legítimo de humanitas.

Nem todos podem estar satisfeitos, porém se um está, é justo. O dono da sege que atropelou a avó do filósofo tem fome e sua vontade de viver (comer) não pode encontrar obstáculos. Se os encontra, tende a eliminá-los. Humanitas, no entanto, não faz sentido para Rubião, porque “seguramente o dono da sege por muito tarde que chegava à casa, não morria de fome, ao passo que a boa senhora morreu de verdade, e para sempre” (p. 20). Rubião não entende a explicação dada por seu mestre; não compreende o porquê da necessidade da morte da pobre velha. O filósofo dá, então, mais um exemplo ao professor, fazendo com que creia que sua visão da morte estava equivocada. Em humanitas, “rigorosamente não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum” (p. 21). A avó de Quincas Borba era uma expansão, a fome do dono da sege, outra; uma havia de resistir: a mais forte.

Notas:

1É mestranda pela Olford Walter University (OLWA), nos Estados Unidos e graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

2É aluna da Escola Estadual de Ensino Médio Emílio Nemer.

 

Referências Bibliográficas:

 

ALBERGARIA, Consuelo. “A Filosofia do Humanitismo”. In: Machado de Assis: Estudos de Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 1994. ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Cultrix, 1965.

COUTINHO, Afrânio. A filosofia de Machado de Assis e outros ensaios. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959.

MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como vontade e Representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007.