Vulnerabilidade ou Machismo: Reflexões acerca do personagem Inferninho do romance Cidade de Deus

Vulnerabilidade ou Machismo: Reflexões acerca do personagem Inferninho do romance Cidade de Deus

VULNERABILIDADE OU MACHISMO: REFLEXÕES ACERCA DO PERSONAGEM INFERNINHO DO ROMANCE CIDADE DE DEUS

VULNERABILITY OR MACHISMO: REFLECTIONS ABOUT THE CHARACTER HELLRAISER OF THE ROMANCE CITY OF GOD

 

                                                                                                    Luciana Carvalho dos Reis1

 

Resumo: Após viver durante vinte anos em Cidade de Deus, Paulo Lins, protagoniza esse espaço, porém, o que ganha visibilidade não são os trabalhadores, mas os que vivem na criminalidade ou em torno desta. Interessante que essa visibilidade é dada às personagens masculinas, que parece refletir a imposição machista do homem. A proposta apresentada aqui visa a observar os aspectos que emanam as ameaças que circundam a personagem Inferninho, “ora bandido, ora malandro”, a violência e o laço sanguíneo que o torna vulnerável ante a afinidade e vergonha ao deparar-se com presença do irmão Ari, “personagem-travestida” do livro Cidade de Deus (2002). “Cidade de Deus” é uma história de guerra. Não apenas a guerra da periferia carioca, mas uma constante disputa de poder, ascensão social e dinheiro. É fruto de uma exaustiva pesquisa, a qual enfatiza um conjunto habitacional que resume uma favela como símbolo da sociedade carioca e sociedade brasileira.

 

Palavras-chave: Vulnerabilidade. Machismo. Inferninho.

 

Abstract: : After living for twenty years in City of God, Paulo Lins, stars in this space, however, which has gained visibility, not workers, but those who live in or around this crime. Interesting that this visibility is given to male characters, which seems to reflect the imposition of the macho man. The proposal presented here is intended to observe the aspects emanating from the threats that surround the character Hellraiser, "sometimes criminal, sometimes mischievous," violence and blood bond that makes it vulnerable before the affinity and shame when faced with the presence of his brother Ari "disguised character in" City of God book (2002). "City of God" is a war story. Not just the war on the outskirts of Rio, but a constant fight for power, money and social advancement. It is the result of extensive research, which emphasizes a housing complex that summarizes a slum as a symbol of Rio society and Brazilian society.

 

Keywords: Vulnerability. Machismo. Hellraiser.

 

 

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1 Mestranda Especial em Estudos Literários na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e Pós-graduanda em Língua e Literatura Espanhola pela Faculdade de Tecnologia de São Francisco (FATESF), pertence ao Grupo de Estudos Interdisciplinar de Transgressão (GEITES) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Docente concursada pela Secretaria Estadual de Educação do Estado do Espírito Santo (SEDU), Brasil, Contato: luciana.reis@educador.sedu.es.gov.br

 

 

 

 

 

“Todo mundo quetinho, senão leva tiro!”

(Cidade de Deus, p.62)

 

 

I-Apresentação e contextualização do malandro e do bandido da década de 1960

 

O tempo ajuda a perceber, sem o risco de partidarismos, a dimensão do impacto de Cidade de Deus (2002). Impacto que então não mais esconde seus segredos. A leitura que se apresenta no decorrer da obra, busca uma reflexão para uma possível consciência dos problemas sociais apontados e a overdose de cada ato de violência não costuma ter sempre a cobiçada longevidade das obras-primas clássicas.

Como se pode observar, o menu temático construído no romance de Lins é a constante ameaça que se segue de maneira brutal e fragmentada com palavras, atos, gestos pelos quais se exprime a vontade que se tem de fazer mal a alguém: o discurso é cheio de angustias e rivalidades, o que gera a violência.

O arquétipo-mítico da rivalidade entre irmãos vem sendo abordado até mesmo pela Bíblia, ao recordarmos a história dos filhos de Isaac e Rebeca, Esaú e Jacó, que desde a gravidez lutavam no ventre da mãe. Mais tarde, o título e o motivo do romance deslumbram o escritor Machado de Assis que dissertou sobre os irmãos Pedro e Paulo os condenando também à trágica “ab-ovo”, desde o útero à eterna rivalidade. Em Cidade de Deus, Lins tece a rivalidade entre os irmãos, Inferninho e Ari, de modo angustiante, quaisquer sinais e manifestação que levam a acreditar na possibilidade de ocorrer algum perigo ao universo masculino de Inferninho se torna ameaçador para o bandido, até mesmo a presença do irmão Ari, que logo no capítulo inicial nos é apresentado como sendo homossexual, motivo de vergonha e culpa para o protagonista do primeiro capítulo. Intitulado, “A história de Inferninho”, que faz referência à década de 1960.

Década essa, posterior à política de remoção dos aglomerados que abrigavam as vítimas da enchente de 1966, os nordestinos e os moradores do Esqueleto (lugar em que constava uma estrutura de concreto predial e que abrigava um grupo de flagelados). A implementação dessa política se deu durante o governo Carlos Lacerda (1960-1965) e situou-se na Zona Sul da cidade, no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas. Assim houve a transferência dessas pessoas para a Zona Oeste, região autorizada para a construção dos conjuntos habitacionais. Nasce então na baixada de Jacarepaguá a Cidade de Deus, com nome inspirado na Cidade de Deus de Santo Agostinho - a qual tratava de uma descrição da cidade divina, uma Jerusalém Celeste (seria interessante se o nome do conjunto pudesse atrair seus moradores).

Vale lembrar que a intenção do governo era retirá-los da paisagem da cidade maravilhosa. As habitações foram arquitetadas pela COHAB (Companhia de Habitação Popular) e financiadas pelo BNH (Banco Nacional de Habitação) e terminaram de ser construídas após o governo Negrão de Lima. Seus projetos foram executados em 1968: o primeiro, em área total de 253.810 m2, limitado entre a Avenida Ezequiel, Rua Moisés e Rua Edgar Werneck; o segundo, em área total de 36.343 m2, constando de 159 lotes e oito ruas, entre a estrada da Estiva (atual Miguel Salazar) e a Avenida do Rio Grande; e o terceiro, em outubro de 1968, abrangendo a maior área, com mais de 120 logradouros, incluindo ruas, travessas, praças, todas batizadas com nomes bíblicos, estabelecendo assim uma relação metonímica entre o nome do conjunto Cidade de Deus e suas vielas.

Cidade de Deus era povoada por diversos tipos sociais, que, em sua maioria, conviviam com os protagonistas da tripartida obra, que se divide em décadas: nos anos 1960, “A história de Inferninho”, nos anos 1970, “A história de Pardalzinho” e os anos 1980, na “História de Zé Miúdo”. Uma das marcas do livro, que por sinal o torna ainda mais interessante, é a predominância da ausência de nomes dos personagens, em especial os protagonistas do romance, vale lembrar que são poucos os personagens que possuem nomes e esses em nenhum momento se atam a sobrenomes, atribuição típica de (sub) classe, o que nos remete os limites estabelecidos pela sociedade entre a favela e o além-favela. O que vem a afirmar Bauman sobre a questão de sub-classe:

 

 O significado da identidade da subclasse é a ausência de identidade, a abolição ou a negação da individualidade, do rosto – esse objeto do dever ético e da preocupação moral. Você é excluído do espaço social em que as identidades são buscadas, escolhidas, construídas, avaliadas, confirmadas ou refutadas. (BAUMAN, 2005; p.46)

Os conjuntos foram distribuídos em três regiões Cidade de Deus, Vila Kennedy e Santa Aliança, esta última, ateve-se às ponderações populares de Vila Aliança por também ser composta por vilas, habitações nas cercanias dos centros urbanos e se localizar na zona oeste como Vila Kennedy. As pessoas foram separadas aleatoriamente, antes de serem transferidas para os conjuntos, o que “acabou mutilando famílias e antigos laços de amizade.”(LINS, 2002; p.32) A esperança de adquirir uma casa própria e estabelecer-se trouxe famílias de várias favelas do Rio de Janeiro, mas a revolta com a distância e com a precariedade  das condições oferecidas nos conjuntos levaram muitos a reconsiderar sua decisão. É neste cenário ainda bucólico que nasce o malandro carioca, Inferninho. Se pesquisarmos nos dicionários de língua portuguesa teremos infindáveis conceitos de malandragem. O antropólogo Roberto da Mata em seu livro Carnavais, Malandros e Heróis, lançou a tese de que o dilema brasileiro residia numa trágica oscilação entre as leis universais cujo sujeito era o indivíduo e situações onde cada qual salvava e se despachava como podia, utilizando para isso o seu sistema de relações pessoais. Desta maneira haveria um combate entre leis que deveriam valer para todos e as relações que só podem funcionar para quem as têm. O resultado desta adição é um sistema social dividido e até mesmo equilibrado entre duas unidades sociais: o indivíduo, o sujeito das leis universais e a pessoa, o sujeito das relações sociais. Entre essas duas unidades o coração de Inferninho balança deixando transparecer a malandragem, o famoso e antipático “jeitinho”. Desse modo, o malandro daria o “jeitinho” singular e pessoal entre a lei ou a situação onde ela deveria aplicar-se e as pessoas nelas implicadas, deixando a lei um pouco “desmoralizada”. Lins, em sua narrativa, conceitua o malandro como sendo, “esperto”, como uma ferramenta de justiça individual perante a força das instituições necessariamente opressoras. O indivíduo "malandro" influenciado pelo meio em que vive tenta a todo custo reparar, às vezes, até mesmo de forma inescrupulosa, aquilo que ele pensa ser de seu direito, aquilo que, na visão dele a sociedade está “devendo”. Dessa forma, o "malandro" nos faz refletir sobre uma dicotomia bandido-herói. Inferninho se mostra no discurso de Cidade de Deus como sendo um Robin Hood caboclo, uma vez que nessa época o conjunto ainda apresentava-se em um ambiente rural:

Tutuca, Inferninho e Martelo passaram correndo pelo Lazer, entraram na praça da Loura, saíram em frente ao bar do Batman, onde estava parado o caminhão de gás.

Martelo anunciou a todos que o gás era por sua conta, não precisavam trazer botijão vazio para trocar pelo cheio. O caminhão ficou vazio em minutos. (LINS, 2002; p.22)

 

No trecho acima o líder do trio ternurinha rouba frequentemente os caminhões de gás e distribui as botijas entre os moradores do conjunto, a figura de Inferninho faz referência ao príncipe dos ladrões o mítico herói inglês, Robin Hood um fora da lei que roubava dos ricos para dar aos pobres. O que vem confirmar Bezerra da Silva, já que a noção de malandro está associada à noção de sambista desde os anos 1920. Em sua música Malandro Rife o compositor renova a grafia com gírias:

 

Quando o bom malandro é rife
Comanda bonito a sua transação
Não faz covardia com os trabalhadores
E àqueles mais pobres ele da leite e pão
Quando pinta um safado no seu morro
Assaltando operario botando pra frente
Ele mesmo arrepia o tremendo canalha
E depois enterra como indigente.

 

Essa questão coloca em discussão o caráter de Inferninho que se segue de dois adjetivos substantivados “o bandido” e “o herói”. Porém, na trama de Lins o nosso anti-herói utiliza-se dessa ação, roubar as botijas e as distribuir, com o intuito de esconder-se da polícia na vizinhança o que vem assegurar Bezerra da Silva em Malandragem dá um tempo, interessante que o samba nos anos 1960 era considerado “samba duro” e “os parceiros se divertiam ouvindo Martinho da Vila, bebiam cerveja e comiam moela de galinha.” (LINS, 2002; p.37). A composição de Bezerra da Silva enfatiza o verdadeiro “malandro” o qual se utiliza da esperteza para esconder-se “dos home” e/ ou “sujeira”:

 

Eh, você não está vendo
Que a boca tá assim de corujão
Tem dedo de seta adoidado
Todos eles afim
De entregar os irmãos
Malandragem dá um tempo
Deixa essa pá de sujeira ir embora
É por isso que eu vou apertar
Mas não vou acender agora...

 

Infelizmente a origem da escolha do personagem Inferninho pelo mundo do crime não elucida as considerações: herói e bandido, mas as acepções de bandido e malandro visto que o personagem se utiliza da esperteza em seu próprio benefício, aqui se trata da “gestação” desse personagem-tipo:  

 

 [...] desde criança vivia nas rodas de bandidos, gostava de ouvir histórias de assaltos, roubo e assassinato. Podia passar distante dos bichos-soltos, mas mesmo assim fazia questão de cumprimentá-los. Nunca lhes negava favores, fazia questão de matar aula para ajudar a rapaziada que botava pra frente: limpava as armas; endolava a maconha; às vezes, comprava o querosene da limpeza dos revólveres com seu próprio dinheiro para subir no conceito com os bandidos. Quando ganhasse mais corpo, arrumaria um berro para ficar rico no assalto, mas enquanto fosse criança continuaria a roubar os trocados do pai, ele não percebia mesmo, estava sempre ligadão de goro.[...] A felicidade, a segurança que sentiu quando Charrão lhe pediu para entocar um revólver em sua casa, cresceu muito mais depois que Charrão foi assassinado. Aquele ferro bonitão ficou para ele de mão beijada. Tratava do três oitão como quem cuida da solução de todos os problemas. (LINS, 2002, p.43)

 

II- O caminho da não escravidão

 

Publicado em 1997, o romance Cidade de Deus, (2002) é marcado por uma linguagem crua e irônica, trata-se do nítido esboço das condições humanas entregues à vulnerabilidade – é neste insensível e oculto universo ao qual conhecemos e/ou entendemos por “favela” que se desenvolve a narrativa.Vale lembrar que logo nos primeiros parágrafos, Lins nos enaltece com um ambiente quase que rural, bucólico, por onde passavam carros de bois e crianças pescavam e tomavam banho de rio, até o momento que o narrador abandona essa narrativa saudosista de boas lembranças e passa para uma narrativa agressiva e/ou crítica, esse saudosismo nos é revelado ao descrever as recordações do personagem Busca-Pé:

 

Doeu pensar na mosquitada que sugava seu sangue deixando caroços para despelarem-se em unhas, e no chão de valas abertas onde arrastara a bunda durante a primeira e a segunda infância. Era infeliz e não sabia. Resignava-se em seu silêncio com o fato de o rico ir para o exterior tirar onda, enquanto o pobre vai pra vala, pra cadeia, pra puta que o pariu. Certificava-se de que as laranjadas aguadas-açucaradas que bebera durante toda a sua infância não eram tão gostosas assim. Tentou se lembrar das alegrias pueris que morreram, uma a uma, a cada topada que dera na realidade, em cada dia de fome que ficara para trás. (LINS, 2002; p.12)

 

“Ir para o exterior tirar onda” nos remete à ideia da condição de rico, o que já está estabelecido socialmente, o rico vai “para” e o pobre vai “pra”. Neste contexto, o romancista atento para as observações do leitor enaltece a ideia do rico instruído, pois ele vai “para”, e o pobre do subúrbio com pouca instrução se utiliza de uma linguagem informal: pobre vai “pra”; desde já, estabelecendo os limites impostos pela sociedade aos moradores da favela e do além-favela.

E neste terreno nebuloso, onde as crianças “detestavam a noite, porque ainda não havia rede elétrica e a mãe proibia as brincadeiras de rua depois que escurecia.” (LINS, 2002; p.19), que nascem as condições e a vontade de matar que se torna inerente ao ódio advindo ao poder do outro, ou em linhas gerais, o “ter” influência diretamente o “ser” e o “estar”:

 

Sentiu vontade de matar toda aquela gente branca, que tinha telefone, carro, geladeira, comia boa comida, não morava em barraco sem água e sem privada. Além disso, nenhum homem daquela casa tinha cara de viado como o Ari [...] (LINS, 2002, p.23).

Nesse contexto o “outro” passa a ser, não só o que está fora do universo de Cidade de Deus, “o estranho”, “o diferente”, como qualquer um que também almeje o poder neste ambiente de pobreza e miséria em que a história decorre.

A possibilidade de criar projetos de vida, o direito de pertencer a um grupo, de ter condições dignas de sobrevivência, de ter realização no trabalho ou poder fazer do trabalho um meio de ganhar dinheiro e realizar outros sonhos são situações tidas como “utópicas” ou, até mesmo, “fora da realidade” de quem nasceu e cresceu dentro da favela.

 

Depois que a avó morreu, Inferninho resolveu que não andaria mais duro. Trabalhar que nem escravo, jamais; sem essa de ficar comendo de marmita, receber ordens dos branquelos, ficar sempre com o serviço pesado sem chance de subir na vida, acordar cedão para pegar no batente e ganhar merreca. Na verdade a morte da avó somente lhe deu uma força para seguir o caminho no qual seus pés já tinham dado os primeiros passos, porque, mesmo se a avó não morresse assassinada, seguiria o caminho que para ele significava não se submeter à escravidão. Não, não seria otário de obra (...) (LINS, 2002; p.43)      

 

A opção pelo crime ou o caminho trilhado, ou ainda a falta de opção era atrativa aos olhos do personagem Inferninho, que não aprovava sob quaisquer hipóteses a submissão à vida honesta do trabalhador, como por exemplo, acordar de madrugada, andar cerca de três quilômetros até o largo da Freguesia para pegar duas ou mais conduções para trabalhar, pois na visão do personagem, assim não valeria viver. A aversão do malandro ao trabalho nos recorda a cena do tropical sossego interpretada por Macunaíma, de Mário de Andrade e a exclamação – “Ai que preguiça!” Pronunciada pelo herói de nossa gente segundo Gilda de Mello e Souza2. Assim também é o personagem Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, o malandro colocar-se-ia do lado do princípio do prazer em oposição ao trabalho. Esse comportamento é notório no diálogo de Inferninho com Lúcia Maracanã sobre a iniciativa da mudança de Martelo:

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2Gilda de Mello e Souza. O Tupi e o Alaúde, São Paulo, Duas Cidades, 1979, p.58. Segundo Josef Peiper, “A festa é a origem, íntima e fundamental, do ócio. É seu caráter festivo o que faz que o ócio não seja somente carência de esforço, senão o contrário do esforço”. El Ocio Y La Vida  Intelectual, 4ª Ed., Madrid, Rialp, 1979,pp.

 

- Dizem que virou crente.

- É... Eu to sabendo. Madrugadão bateu pra mim. Eu é que não entro nessa onda não, morou...? Ficar aceitando tudo que o pastor diz, ser pobre pro resto da vida e nem ligar... É coisa de otário, morou?(...) (LINS, 2002; p.130)

 

Lins tece a sua trama de forma brilhante, tornando-se o poeta que “ariscou a prosa mesmo com balas atravessando os fonemas” (LINS, 2002, p.21) – tão lírico e poético3 – parece angustiado diante das infindáveis temáticas que poderiam ser alargadas a partir da leitura do romance4 – em especial, quando por instinto nos recordamos das inesquecíveis cenas do filme dirigido por Fernando Meireles5.

Entretanto, a predominância de personagens/vozes masculinas pode ser observada em Cidade de Deus que apresenta um universo masculino tornando-se, antes de tudo, um desafio ainda mais instigante. Interpretando Alba Zaluar no livro Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas percebe-se que esta masculinidade era vista como algo indicativo de poder:

 

No Brasil, pouco se sabe dos efeitos da masculinidade construída pela mídia com os filmes enlatados dos heróis-machos americanos. Tampouco sobre o excesso de notícias que põem em evidência os criminosos mais violentos e mais cruéis do Rio de janeiro. Fotos, textos e manchetes conferem–lhes glória e glamour. Embora outras masculinidades também sejam apresentadas publicamente, pouco se sabe sobre essa diária exposição dos jovens – em busca de modelos de masculinidade – à fama bandida. (ZALUAR, 2004; p.385)

 

 

 

 

 

 

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3A respeito do lirismo e do poético na obra Cidade de Deus, consultar artigo do professor doutor Jorge Luiz do nascimento, com título “Na tábua da beirada: o poeta na cidade de Deus”.

4 Isso está na monografia de conclusão de especialização de Fernanda Lyrio apud. Em entrevista à revista Cara Amigos, o autor assume: “Escrever um romance não é brincadeira não.” (p.31)5De acordo com a primeira edição do livro,  algumas personagens tiveram seus “nomes” modificados devido a  uma revisão do autor em 2002. Após a exibição do filme Paulo Lins foi surpreendido por  vários os  processos judiciais que envolviam o auto-reconhecimento de alguns moradores da favela em nas personagens do filme. Isso por que  a obra, mesmo sendo fictícia, faz uso de ‘nomes’ de alguns conhecidos moradores do conjunto, como declara: “Eu tenho processo na justiça, de várias pessoas (...) Todo mundo fala: eu sou fulano, eu sou sicrano. Depois que surgiu o filme, antes não (...)” (Revista Caros amigos, 2003; p.35)

5Cineastra e diretor do filme Cidade de Deus.

 

 

Não se pode negar que o estudo ou a percepção do sexo (gênero) como fator que identifica a obra seja mais importante do que a classe social a qual os personagens estão inseridos e/ou a etnia, as condições psicológicas e educacionais dessas figuras, uma vez que essas considerações são de extrema importância para o entendimento do romance.

Utilizando-se de uma simbologia assustadora e ainda temida, Lins realça o “efeito da realidade” e, com uma habilidade cinematográfica invejável, nos apresenta uma narrativa recheada de sordidezes, dramas e violências sejam físicas, simbólicas, psicológicas ou, ainda, sociais. E se o que pertence a Inferninho é insuficiente, corre-se o risco da apatia, do desafeto, da dor em relação ao “ter” do outro.

A justificativa para o presente estudo ateve-se às ponderações modestas acerca das simbólicas representações de vulnerabilidade ou machismo que permeiam o crudelíssimo mundo tipicamente masculino e poderoso do personagem Inferninho:

 

O bandido afirmou os olhos em Ari. Sua pele soltou um suor gelado. Sim era o Ari, o filho de sua mãe que queria ser mulher ali no meio de todo mundo. Na certa, fariam chacota com ele, passariam a mão em sua bunda e depois acabariam batendo nele. Não ficaria ali para ver isso.[...] (LINS, 2002, p.141-142)

 

No trecho acima é nítido o medo de que alguém descubra a identidade do irmão Ari, fato que causava pânico em Inferninho, a ponto de suar frio e sair às pressas do baile sem explicar a mulher Berenice o que estava acontecendo, mas, 

 

 Berenice ia ao seu lado tomando as devidas precauções.  Ao dobrarem a última rua daquela caminhada, ela desviou o olhar para o marido, que deixava algumas lágrimas escapulirem dos olhos vermelhos. [...] (LINS, 2002, p.142)

 

Nesse fragmento Inferninho deixa transparecer o sentimento que o faz proteger o irmão, o amor tão absoluto capaz de tornar insuportável a dor de ver alguém enxovalhar e ofender Ari, ou a culpa por não ter conseguido evitar a homossexualidade do consanguíneo apresentada ainda na infância, ao mesmo tempo em que nutre o ódio pelo personagem travestido Ana Rubro Negra, o que vem confirmar LYRIO:

 

A identidade original de Ana Rubro Negra, ainda não nos é apresentada no romance, mas traços representativos da exuberância e da extravagância do travestido Ari refletem o sentimento de ódio de Inferninho diante da contraditória “feminilidade masculina” do irmão.

Num episódio das tramas do primeiro capítulo, após atravessar o braço direito do rio, Inferninho é surpreendido ao avistar uma pequena multidão que, em uníssono, gritava “Bicha, bicha, bicha.” (p. 40) – tratava-se de uma referência a Ari, descrito, no texto de Lins, de acordo com suas vestimentas tipicamente femininas (LYRIO, 2006, p. 103).

 

 

III- A vulnerabilidade que intimida o malandro e bandido

 

O capítulo inicial da tripartida Cidade de Deus é nomeado com “A História de Inferninho”, neste momento do romance o autor nos apresenta o malandro e conseguintemente o irmão travestido por quem Inferninho sente antes do ódio, a insuportável vergonha. Lins deixa fulgente a maior das ameaças para o bandido Inferninho. Além de expor a estrutura familiar deficiente que o protagonista possui, o romancista nos apresenta a opção sexual do irmão desse personagem-tipo, verdadeiro motivo da aflição do bandido:

 

[...] o pai, aquele merda, vivia embriagado nas ladeiras do morro do São Carlos; a mãe era puta da zona, e o irmão, viado. A mãe piranha até que passava, era conhecida por sua personalidade forte não levava desaforo para casa, tinha palavra e era respeitada no Estácio; o pai também não era o seu maior problema, porque, quando sóbrio, as crianças não riscavam o seu rosto de giz, não lhe roubavam os sapatos, e, apesar disso tudo, ele era bom de briga e ritmista da escola de samba. Mas o irmão... era muita sacanagem.. ter um irmão viado foi uma grande desgraça em sua vida. Imaginava o Ari chupando o pau dos paraíbas lá da Zona do Baixo Meretrício, dando o cu para a garotada do São Carlos, fazendo troca-troca com marinheiros e gringos na praça Mauá, comendo bunda de bacana nos pulgueiros da Lapa. Não aceitava que seu irmão passasse batom, vestisse roupas de mulher, usasse perucas e sapatos de salto alto. (LINS,2002, p.23)

 

O malandro se identifica com o irmão de maneira antagônica, pois sintetiza o amor e o ódio como características singulares intensificando o que vem a afirmar Hall, em seu livro “A identidade cultural na pós-modernidade”. O teórico busca avaliar se estaria ocorrendo uma crise com a identidade cultural, em que consistiria tal crise e qual seria a direção da mesma na pós-modernidade. Para efetivar tal intento, analisa o processo de fragmentação do indivíduo moderno enfatizando o surgimento de novas identidades, sujeitas agora ao plano da história, da política, da representação e da diferença, é esta fragmentação que Lins deixa brilhante na primeira parte de seu romance como mensagem transmitida pelo então protagonista Inferninho, o personagem vive em seu eu real dotado de razão, o que dificulta a aceitação da condição sexual de Ari. A preocupação de Hall também se volta para o modo como teria se alterado a percepção de como seria concebida a identidade cultural. Todos esses aspectos constituem-se como fases de um procedimento analítico que intenta descrever o processo de deslocamento das estruturas tradicionais ocorrido nas sociedades modernas e pós-modernas, assim como o descentramento dos quadros de referências que ligavam o indivíduo, a exemplo Inferninho, ao seu mundo social e cultural.

E esta crise individual do nosso malandro está na maneira dele observar o outro seja de forma fantasiada ou imaginária:

 

[...] A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser visto por outros. Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a “identidade” e construindo biografias que tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque procuramos recaptular esse prazer fantasiado da plenitude. (HALL, 2003, p.39)

 

Hall ainda enaltece esse processo como inacabado afirmando na obra acima que as partes femininas do eu masculino permanece com ele e encontram-se ocultas e inconscientes até a vida adulta. De repente, se a vizinhança descobrisse que Inferninho possuía um irmão homossexual provavelmente, alguns duvidariam da masculinidade do bandido.  Inferninho se ajustaria ao sujeito do iluminismo de Hall, um indivíduo que vive uma crise de identidade deixando transparecer dois sentimentos distintos o amor fraternal que atribui ao personagem Ari e o ódio que nutre por este travestido. O malandro precisava ocultar através do ódio sua virilidade. É essa dualidade no campo microscópio do “familiar” que evidencia a crise no plano mais global exposta por Hall:

 

O pensamento voltou-se para o irmão. Um vago sentimento de ternura percorreu sua alma, mas o ódio que sentia daquele viado reacendeu-se.(LINS, 2002, p.143)

 

Assim, Lins deixa nítida a predominância de um universo completamente masculino, para Inferninho ser homem e ser mulher são situações distintas, onde “meio termo” poderia até existir mas não em sua família, ainda mais na figura do único irmão. Seria incoerente um bandido ter um irmão homossexual.  Ana Rubro Negra, o travestido, assim como Ari se identifica, é o “estranho”, o intruso, a válida ameaça ao universo que se caracteriza como masculino em Cidade de Deus:

 

[...] mas homem não chora, ainda mais na frente duma mulher. Homem que chora é viado, assim como o Ari. [...] (LINS,2002; p.143)

 

Logo na primeira conversa com o irmão Ari, o malandro interpreta a estranheza diante do travestido, o universo em que Inferninho habita é tipicamente masculino, não cabendo a seu irmão a condição feminina, motivo de maior desonra para o bandido, o que vem alegar LYRIO:

 

A “identidade feminina” de Ari ganha voz no primeiro diálogo que a narrativa esboça entre os irmãos e que ocorre quando o travesti decide sair do local onde morava, no morro do São Carlos, para visitar Inferninho em Cidade de Deus – lugar em que Ari estava proibido pelo irmão de entrar.

É por meio desse diálogo que percebemos a necessidade da personagem travestida de exercer o papel de mulher nos afazeres domésticos, se oferecendo para dar uma “arrumadinha” na casa do irmão. (LYRIO, 2006; p. 104)

 

O romancista nesse mesmo diálogo nos confirma a origem humilde da família dos irmãos, um dos possíveis motivos do malandro se atrair pelo crime, aqui não se trata de associar a teoria de Freud e seus seguidores mais ortodoxos, como Ian Suttie ao tipo de sentimento que emana Inferninho, não temos até agora provas adequadas para dizer que o amor é fruto apenas da libido satisfeita ou frustrada. Esse enfoque restrito nos leva aos sentimentos de Ari em relação a outros homens, portanto não se pode negar que existe um amor-fraternal que une os irmãos e a libido, nesse contexto só vislumbra o amor limitado ao estado animal, ora heterossexuais, ora homossexuais. Essa identificação feminina atribuída a Ari incomoda a virilidade do bandido. A família dos irmãos possuía uma estrutura deficiente, o pai alcoólatra e a mãe sempre ausente, o que obrigou Inferninho se tornar o patriarca, o chefe da família. Aqui o malandro se mostra angustiado ante o estado de saúde do pai e a dificuldade enfrentada pela mãe para conseguir água. O amor que se mostra na cena da família é repleto de proteção e de conservação das pessoas por quem Inferninho sente afeição:

 

- Eu não falei que não queria ninguém aqui?

- É que papai não pára de beber, não come nada, volta e meia tá doente. Mamãe tá nervosa, sem dinheiro. Hoje nós sabe que é muito mais melhor morar aqui do que lá. Mamãe tá cansada daquele sobe-e-desce carregando água. Nós tamo querendo que ela vem morar aqui eu vim te avisar e saber se tu tem um pra comprar remédio pro papai, porque eu já tô dura. – Ajeitou a peruca e continuou: - Vou lá na tua casa dar uma arrumadinha, porque mamãe tá pensando em vim ainda esta semana.” [destaque] (LINS, 2002; p.40)

 

Voltamos à condição de “intruso”, de “ameaça” de Ari ao universo masculino de Inferninho esse se mostra cada vez mais feminina emocionalmente e psicologicamente, ao afirmar “tô dura”, o que significa, “estou sem dinheiro”, o personagem travestido assume sua identidade pelos fatores emocionais e psicológicos e não por sua condição biológica. A narrativa de Lins deixa clara esta condição de “estar mulher” de Ari, o que acende a revolta e o ódio de Inferninho, que não suporta a ideia de ter um travestido se apropriando dos afazeres domésticos de sua casa:

 

Deixa que eu rumo uma mulher para rumar a casa, morou, cumpadí? Não quero viado lá em casa, não. Se tu fosse homem, tudo certo, mas tu  é a maior bichona, descarado, sem-vergonha, puto, galinha, marica... (LINS, 2002; p.40)

Ari não ousou fazer nenhuma objeção ao que o irmão dizia. Lembrou-se da vez que tentara ir contra as suas palavras e levou chumbo no pé. Inferninho mandou Ari só aparecer de madrugada para conversar.  [...] (LINS, 2002; p. 40-41)

 

Inferninho demonstra no trecho acima que ama o irmão a ponto de protegê-lo de homofóbicos e pessoas maldosas, ao mesmo tempo em que odeia a condição de travestido do Ari a ponto de atirar em seu pé. Lins traz a tona mais uma vez a violência, o que vem confirmar Bhabha, em seu texto “O local da cultura”:

 

 [...] O problema é, naturalmente, que as identificações ambivalentes de amor e ódio ocupam o mesmo espaço psíquico e que projeções e paranóicas “exteriorizadas” retornam para assombrar e dividir o lugar em que são produzidas. Enquanto um limite firme é mantido entre os territórios e a ferida narcísica está contida, a agressividade será projetada no outro ou no exterior. (BHABHA, 2007, p.211)

 

No trecho a seguir o romancista apresenta Ari submisso a Inferninho, daí a culpa em relação à educação do irmão, onde teria falhado enquanto “pai” ou irmão mais velho?  O bandido por sua vez mantinha-se culpado e envergonhado diante da identidade sexual do irmão. Essa identidade nos é revelada logo na infância dos irmãos:

 

Lembrava-se de quando Ari nasceu: todo mundo dizendo que era homem. E o desgraçado virou bicha. Recordou que o carregava na corcunda pelos caminhos do morro quando ia buscá-lo na escola ou comprar alguma coisa nas biroscas. Tentou fazer o caçula jogar bola, soltar pipa, subir em árvore e nada: Ari sempre molengão, não mexia com as garotas; machucava-se à toa; tinha medo de tudo. Aí que começou a desconfiança de seu irmão ser viado. Assim que Ari começou a sair à noite, tudo veio a se confirmar, várias pessoas o viram vestido de mulher na Zona do Baixo Meretrício. Uma vez foi até linchado por moradores da rua Maia Lacerda por estar de viadagem com um marujo num boteco. Agora Ari estava ali de novo com aquela cara de vem-cá-meu-puto. Seria muita sacanagem se aquele bichona resolvesse morar no conjunto.  (LINS, 2002, p.40)

 

A intolerância reflete o abandono, a exclusão social e o sofrimento revelam-se nas depressões, nas cenas de violência que o narrador descreve com indiferença e Inferninho então busca de forma compulsiva uma saída que vise amenizar sua angustia e a dor de suportar esse mal-estar em relação à inaceitável identidade sexual do irmão:

 

A Pedra da Panela, a Pedra da Gávea, a serra do Grajaú eram nítidas, mas não maiores que a dor de ter um irmão boiola.[...] (LINS, 2002; p.41)

 

Diante dessa aflição, Inferninho se torna agressivo e disposto a sobreviver a todo custo mesmo que de maneira torpe às mazelas que o além-favela deixou, assalta caminhões de gás, motel, biroscas e nos intervalos acende um ou dois baseados.

A coexistência do travestido, Ari, deixa transparecer no olhar do personagem-travestido a culpa de ter o único irmão no mundo de sordidezes, vale lembrar que a narrativa não se apresenta como pacífica e que a obra desencadeia um vasto campo para o uso de drogas, para o tráfico e, em especial, para as práticas cruéis e frias de violências físicas e simbólicas – tudo regido pelo poder:

 

Ari se manteve calado, apenas vagou o olhar enquanto o irmão falava. Acreditava que tudo aquilo era por sua causa. Se não fosse bicha, o irmão moraria com eles. Foi só se travestir para o Inferninho resolver ficar de mundo em mundo. Gostava dele; o pressuposto de no fundo, no fundo, o irmão lhe ter afeto ora era cheio ora era vazio. Teve raiva do sexo naquele momento, atribuiu-lhe toda a sua desgraça. [...] (LINS,2002,p. 44)

 

IV- Considerações Finais

 

Fica evidente, portanto, que na tripartida das histórias dos personagens criados por Paulo Lins, Inferninho permeia um universo masculino e se torna vulnerável não apenas a violência da polícia ou até mesmo a agressões de outros bandidos, mas o que mais o intimida é a certeza de possuir um irmão, que se identifica de maneira homossexual. O “malandro” se mantém num espaço de mediação entre a ameaça e a afeição que nutre pelo consanguíneo. Inferninho se interpõe entre os marginalizados e as classes dominantes. O que vem confirmar Vivaldo Trindade em seu artigo Lirismo e Violência em Cidade de Deus:

 

E, quanto mais a exclusão social aperta, mais a violência e a solidão se apoderam do excluído e cercam o excludente. Cada um deles tem de se defender do outro para manter sua forma de poder; é assim que Cabeleira, Bené, Zé Pequeno e Manoel Galinha se isolam em seus trajetos e almejam sempre o momento em que terão uma vida normal, isto é, uma vida em que possam gozar dos mesmos direitos dos que possuem um bom nascimento: dinheiro, respeito e dignidade. Para isso seria preciso que o mundo fosse outro, que a ordem das coisas fosse outra, que eles não tivessem de sentir medo e fazer-se temer.6

 

Para enfatizar a opinião de Hall e Bhabha, podemos utilizar as proposições de Bauman para identidade. De acordo com ele, é possível inferir que todos os sujeitos têm mais de uma identidade, estas, muitas vezes inconciliáveis, de forma que nos encontraremos sempre deslocados, ou seja, não estamos totalmente em lugar algum. Na modernidade líquida7, nossa localização é contínua em uma região de permuta, desse modo às identidades são flutuantes nos obrigando a constantemente dar explicações e estar sucessivamente em negociação.

Ao relatar a história de Inferninho, Lins confere aflições ao personagem que infelizmente ainda é encontrado na fórmula da vida real, pois a intensidade do medo se mantém firme e sufocante o torturando, sua maior dor era ter o irmão travestido e este sofrer também perante a sua condição sexual.

O crime aguçou nosso anti-herói, que viveu uma constante disputa por condições dignas de sobrevivência e a saída, a princípio propícia ao malandro foi conduzida de forma torpe, a criminalidade. Por fim, Inferninho queria ter paz, já estava indiferente aos perigos que o polícia lhe proporcionava:

 

 [...] Mas pode realmente haver paz plena para quem o viver fora sempre remexer-se no poço da miséria? Buscara algo que estava tão perto, tão perto e tão bom, mas o medo do orvalho repentinamente virar tempestade o fizera assim: cego para a bonança, que agora vinha definitiva. Talvez a paz estivesse no voo dos passarinhos, na observação  da  sutileza  dos  girassóis  vergando-se  nos jardins,  nos

 

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6Fragmento retirado do artigo “Lirismo e Violência” em Cidade de Deus por Vivaldo Trindade.

7Conceito presente na obra de Bauman e que indica período ou processo de globalização.

piões rodando no chão, no braço do rio sempre  saindo e  sempre voltando, no frio ameno do outono e no vento em forma de brisa. No entanto, tudo sempre poderia se agitar de um modo indefinido, concorrer contra sua pessoa e cair na mira de seu revólver. Mas pode alguém enxergar o belo com olhos obtusos pela falta de quase tudo de que o humano carece? Talvez nunca tenha buscado nada, nem  nunca

pensara em buscar, tinha só de viver aquela vida que viveu sem nenhum motivo que o levasse a uma atitude parnasiana naquele universo escrito por linhas tão malditas. Deitou-se bem devagar, sem sentir os movimentos que fazia, tinha uma prolixa certeza de que não sentiria dor das balas, era uma fotografia já amarelada pelo tempo com aquele sorriso inabalável, aquela esperança de a morte ser realmente um descanso para quem se viu obrigado a fazer da paz das coisas um sistemático anúncio da guerra. (LINS, 2002; p.171)

 

Diante das questões levantadas sobre violência, criminalidade e culpa criou-se uma perigosa divisão que ameaça o universo masculino do personagem Inferninho de um lado as afirmações de que a sociedade é que é a criminosa, na medida em que é desigual e iníqua, em especial quando parte do Estado que não perdoa, puni de maneira vil e cruel. Castiga desde a infância. Exemplificando as condições de lazer na favela são nulas. As crianças brincam próximo às valas de esgoto a céu aberto e essas cortam as ruas. O trabalhador da periferia até chegar ao trabalho viaja em duas ou três conduções. Por mais que a vontade de ser tornar honesto seja digna, essa condição se torna penosa e “utópica” aos que vivem no subúrbio. No outro extremo estão os que em virtude do medo, da indignação ante os horrores praticados pelos bandidos pensam que a ordem deve ser mantida a qualquer preço. O nosso anti-herói se atraiu pelo mundo do além-favela, assim como qualquer criança deseja um brinquedo da TV. Inferninho queria paz, amava sua família até mesmo o irmão que o fazia se sentir culpado e envergonhado ante a identidade sexual. Inferninho ainda possuía uma estrutura familiar deficiente que foi destruída por um “sistema” covarde e acima de tudo poderoso.

 

V- BIBLIOGRAFIA

 

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: EdUFMG, 2007.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Entrevista a Beneditto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

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_______, O que faz o Brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco LTDA, 1984.

FAUSTO, Boris. A malandragem e a formação da música popular brasileira. História Geral da Civilização Brasileira: Tombo III - O Brasil republicano, v.11: economia e cultura (1930-1964). 4ª ed. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2007.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: EdUFMG; Brasília: Representações da UNESCO, 2003.

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HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

LINS, Paulo. Cidade de Deus. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

LINS, Paulo. Sem medo de ser. (entrevista de Paulo Lins concedida à revista Caros Amigos/ Literatura Marginal), São Paulo 2003; (p.30-35).

LYRIO, Fernanda Maia. A (quase) mulher: a feminilidade travestida da personagem Ana Rubro Negra, do romance Cidade de Deus. In: SOUZA. Marcelo Paiva de (Org.); CARVALHO, Raimundo (Org.); SALGUEIRO, Wilberth (Org.) Sob o signo de Babel, Literatura e poética da Tradução.1.ed. Vitória: GEITES/PPGL/MEL/EdUFES, 2006. v.1.

MATOS, Claudia Neiva de. Acertei no milhar: Malandragem e samba no tempo de Getúlio. v.46. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

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MUSZKAT, Malvina. Feminino ou masculino: eis a questão. In MUSKAT, Malvina & SEABRA, Zelita. Identidade Feminina. Petrópolis: Editora Vozes, 1995.

NASCIMENTO, Jorge Luiz do. Na tábua da beirada: o poeta na Cidade de Deus. Vale a escrita, nº 2. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, 2002.

SILVA, Aline Cristie Xavier da. A representação da favela como cenário urbano na ficção brasileira contemporânea. Dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira apresentada à coordenação dos cursos de Pós-graduação da UERJ; orientdor: professor doutor Flávio Martins Carnero; 2º semestre de 2004.

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WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid Acesso em: agosto de 2011.

ZALUAR, Alba Maria. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Ed.1ª, Ed. FGV. Rio de Janeiro, 2004.

Site pesquisado:

www.vivafavela.com.br