Resenha da Obra Ressurreição (1899) - Liév Tolstói

Resenha da Obra Ressurreição (1899) - Liév Tolstói

A ideia de construir o Romance Ressurreição foi concebida quando em conversa com o jurista russo Anatoli Fiodorovitch Kóni, Tolstói obteve informações sobre alguns casos da justiça criminal. Em uma visita a propriedade rural de Tolstói, o jurista Kóni relatou ao escritor, o caso de um jovem da nobreza que solicitara seus serviços como advogado: Ao ser convocado para integrar o júri popular, o aristocrata reconhece na figura da acusada uma ex-criada a quem ele mesmo havia seduzido e engravidado há muito tempo na casa de campo de um familiar.

A jovem, que trabalhara como doméstica foi dispensada pela patroa e ao mesmo tempo abandonada pelo jovem, depois de envolver-se romântica e sexualmente com ele. Sem ter lugar para onde ir, ela começa a se extraviar moralmente, e participa de roubos, crimes e desemboca na prostituição até ser denunciada por seus delitos. O rapaz arrependido, se enxergando como o responsável moral pela queda moral daquela mulher, se propõe a casar com ela para redimir sua culpa, entretanto a garota acabara morrendo de uma doença num presídio.

O relato de Kóni reverberou fortemente em Liév Tolstói, pois este se lembrara que quando jovem, seduziu uma criada que trabalhara na fazendo de uma parente. Praticamente a mesma situação da história contada pelo jurista – a empregada acaba sendo expulsa pela patroa ao mesmo tempo em que teve um filho bastardo decorrente do seu envolvimento físico com o escritor.

Havia um contexto histórico que teve uma força decisiva e deu sentido à atividade literária de Tolstói. Em 1894, ao assumir o trono, o Czar Nicolau II exigia dos seus súditos um juramento de lealdade e reconhecimento de seu poder supremo, e ao mesmo tempo, um grupo de cristãos chamado de Doukhobors que significa “lutadores do espírito” pregavam ideias simpáticas ao romancista: A negação da propriedade do governo, do Estado, do valor do dinheiro, da Igreja e da Bíblia como fonte de revelação, além disso, a seita era adepta ao vegetarianismo, pacifismo e cultivavam a não violência, entre eles conviviam em um estilo de vida simples, comunitário, igualitário e democrático.

O grupo ao negar a ordem do Czar e não se sujeitar ao alistamento militar foi banido, perseguido e exiliado por soldados cossacos a mando das autoridades, seus líderes foram presos e muitos que aderiram a seita tiveram suas casas, posses e bens confiscados.

A par de todo esse dinamismo, Tolstói que se afinava muito com a sabedoria desse grupo, conseguiu que fosse divulgada no Times[1] de Londres, uma denúncia ao governo em forma de artigo. O então primeiro ministro e principal conselheiro do Czar, Konstantin Pobedonostsev, que entre seus poderes, estava no comando da Igreja Ortodoxa russa, recomendou ao Czar Nicolau II que ordenasse a prisão de Liév Tolstói. Ciente da popularidade do escritor, o Czar, evitou tomar qualquer atitude drástica, porém colocou toda a propriedade de Tolstói sob vigilância constante e cada movimento de seus discípulos eram observados pelos espiões.

Com um quadro de muita animosidade política e pressão de seus editores, a feitura do romance consumiu todo seu pensamento, que o obrigou a interromper outros projetos que estavam em andamento, como a novela Padre Sérgio (a qual havia uma força muito poderosa, mas que não era apropriada para o momento).

O romance esboça um quadro da sociedade russa em vias de se modernizar, tece assim, uma crítica aos fundamentos humanísticos desse progresso, pela visão do protagonista, o Príncipe Nekhliudov, cujo nome significa “Manhã de um senhor de terras”, que contém muitos traços do próprio Tolstói.

O Príncipe estava empenhado em libertar uma das prisioneiras, que segundo suas convicções era uma inocente e foi condenada injustamente por erro, uma incoerência na decisão do júri, que ao serem questionados pelo promotor adjunto, votaram que ela era culpada da morte sem intenção de roubo, e a situação era exatamente oposta. Máslova, a prisioneira foi acusada de envenenar um rico comerciante e se apropriar de seus bens com funcionários de um hotel onde trabalhara.

A trama motivada pela missão da qual Nekhliudov se obrigou, desenvolve-se no bojo de toda estrutura de poder dominante da alta sociedade. O próprio protagonista, por ser um Príncipe, sabia que sua presença causava impacto nas autoridades e desse modo se municia de todas as informações necessárias, busca estreitar de propósito falsos relacionamentos, com ex-colegas de exército - próximos à família do Czar, com as esposas de nobres que podem interferir diretamente na decisão dos juízes do tribunal. Nekhliudov se intriga e teme o tamanho poder dessas influências, pois conforme uma situação de passagem no romance bastou que encaminhasse uma carta, conseguida através de uma conversa social e certo charme a esposa de um Conde (amigo dos oficiais do governo), para que a petição foi aceito no Senado e posteriormente realizado um apelo a Sua Alteza Imperial.

O tamanho de esse poder muito incomoda o Príncipe, que em seu caminho, aos poucos vai desmascarando uma galeria de ministros, juízes, policiais e o tempo todo se atormenta com o questionamento: - Qual o sentido da Justiça? “A manutenção dos interesses de classes” – responde a si mesmo.

Liév Tolstói na figura de sua protagonista lança a mão de diversos argumentos que estão presentes na Filosofia de Herbert Spencer, na famosa obra Estática Social e do americano Henry George, segundo os quais a terra não pode ser propriedade privada, ninguém tem o direito de tributá-la e, diferentemente dos socialistas que defendiam uma partilha igualitária, essa corrente filosófica pregava que a terra não pode ser nem mesmo arrendada à ninguém. Esses Filósofos são citados algumas vezes no romance, pois o Príncipe, além do dilema com a prisioneira Máslova, também é proprietário de imensas quantidades de terras, e por isso s vê em  dívida moral com os camponeses, com os quais acaba cedendo parte de suas propriedades rurais.

Por continuar atormentado com o sentido da justiça, o Príncipe estuda diversos nomes do Direito que estavam em voga, como Lombroso e Charcot, que reiteram a hereditariedade do crime, identificados pelos traços faciais, pode-se descobrir o quanto uma pessoa tem propensão ao crime. Contudo, mergulhado nessas discussões abstrato-intelectuais, o Príncipe não se contenta – Mas por que as pessoas se arrogam o direito de julgar e discriminar umas as outras?

Em outra cena, numa conversa sobre a situação do sistema prisional russo com o cunhado, um parente nobre, que defende a propriedade e posse da terra, Nekhliudov chega a dizer: “O tribunal é apenas um instrumento administrativo para manutenção do estado de coisas vigentes, vantajoso para nossa classe”.

O que predomina em Ressurreição é o clima de questionamento social e uma consciência muito atormentada com o poder de influência que a aristocracia tem sobre uma grande massa de pessoas. Todo o refinamento cultural, a arte e a ciência praticadas pela alta sociedade, atuam como cúmplices da perseguição e preconceito com uma grande massa humana.

A obra foi acusada muito rasteiramente por difundir ideias evangelizadoras do autor, devido ao estigma de certas campanhas humanitárias de Tolstói, movimento chamado de tolstoismo.

No entanto, apesar de criticado por suas intenções doutrinárias, o romance merece atenção, pois há muitas reflexões filosóficas, jurídicas e somente nas páginas finais que o livro entra em terreno religioso, com as reflexões de frases do Evangelho, principalmente o de Matheus, feitas pelo príncipe. O tom moralista e religioso não é o predominante no romance, que se centra mais em expor sua crítica na falsidade das classes dominantes, no farisaísmo e nos privilégios.

 


[1] Principal revista de notícias econômicas da capital inglesa