Resenha Crítica - Obra: Recordações da Casa dos Mortos (1861-1862)

Livro: Recordações da Casa dos Mortos (1861-1862)

 

 

Por Giuliano de Méroe

 

O livro Recordações da Casa dos Mortos resulta da experiência que o romancista russo Fiodor Dostoiévski, viveu na prisão de Omsk na Sibéria. Para melhor compreensão, é interessante o leitor situar-se brevemente em informações históricas relativas à Rússia.

A sucessão do Czar Alexandre I por Nicolau I, seu filho, deu-se em um clima de muita instabilidade política. Um grupo de intelectuais, influenciados pelas mudanças nos sistemas econômicos na Europa Ocidental, organizou um levante chamado decembrista[1].

O grupo, porém, foi derrotado pelo governo e seus integrantes condenados a trabalhos esforços na Sibéria. As agitações políticas vigoravam na Europa, e principalmente na França, em que um grupo socialista favorável ao sufrágio universal conseguiu derrubar a ordem monárquica e criar a Segunda República. Essas turbulências agitaram novamente, entre os grupos intelectuais, discussões, sobre a retomada das ações do antigo levante revolucionário.

Dostoievski participava dessas reuniões, em um grupo chamado Petraschevski (nome do próprio funcionário do Ministério do Interior que cedia sua casa como espaço).

Quem conhece o estilo do autor, admite que o romancista não tivesse nada de revolucionário ou mesmo ‘sangue’ político, entretanto o interesse pelo clima intelectual o dominava completamente. Esse grupo foi denunciado por um agente infiltrado e seus participantes condenados à pena de Morte. A particularidade dessa história, foi-se que o Czar Nicolau I fez na verdade uma encenação, pois não pretendia a morte e sim aterrorizar os condenados, e de último instante, quando eles já estavam no batalhão de fuzilante, surge a notícia de que a pena foi comutada em trabalhos esforçados na Sibéria.

A tensão diante da morte é uma de suas marcas que o autor põe em movimento no romance.

Ao chegar à Sibéria, o escritor conhece um colono que fora nobre proprietário rural, chamado Aleksander Petrovitch Goriantchikov que estivera cumprindo pena de dez anos por assassinar a esposa por ciúmes. A personalidade desse senhor em muito intrigara e desperta curiosidade em Dostoievski, pois era taciturno; nas tentativas de conversas, sempre mostrava uma postura desconfiada e desejara somente a solidão. Na ocasião em que o conheceu, Petrovitch morava na casa de uma velha senhora, e somente para a filha desta, uma garotinha de dez anos, ele demonstrava sentimento humano, como seu professor de francês.  Em uma das visitas do romancista, a velha senhora lhe informou sobre a morte de Goriantchikov. Ao questiona-la sobre a morte de Petrovitch, Dostoievsky ganha desta senhora, uma cesta velha de papéis. Os papéis são as anotações do colono russo sobre o tempo que passou na prisão por dez anos. Um ponto curioso para mim foi a semelhança no estilo de introduzir o romance entre o autor russo e o escritor alemão Hermann Hesse, com seu Harry Haller, personagem do livro O Lobo da Estepe.

Aquele universo diferente, com suas singularidades, fascinou o romancista, que a partir de deste heterônomo, conta a história da própria experiência na prisão.

A partir da narrativa, em 1ª pessoa, pelo personagem heteronômico, podemos acompanhar sua trajetória no presídio.

Goriantchikov, por ter vindo de uma classe aristocrata, sente na pele a distância de seus colegas.  É discriminado por ser de origem nobre, que o veem como um estranho, alguém incapaz de entendê-los. Os presos debocham de sua inaptidão para trabalhos braçais, e por suas maneiras mais finas. Nem por isso, deixa de conversar e interagir com eles, porém essa sensação de distanciamento, esse sentimento mesquinho, é algo irritante para ele. Porém, logo no inicio do livro, ele menciona que o que mais o incomodou era a convivência forçada, e nunca podia estar sozinho.

Os diferentes personagens surgindo na narrativa ganham a atenção de Petrovitch, por suas histórias e caráter particulares. Dostoievsky impressionado com certos detalhes no comportamento de alguns colegas de prisão consegue explorar a fundo a alma humana em nuanças muito delicadas.  Fiquei impressionado com a menção do autor, em uma carta enviada ao irmão Mikhail, logo que terminou de cumprir a pena. “Acredite, existem naturezas profundas, fortes, maravilhosas, e como é bom descobrir ouro em uma casca rude”[2].

Outro fato que achei interessante é que essa vida no presídio se transforma numa metáfora para sua vida real, fora da prisão. As relações de conveniência e poder; amizades por interesse etc. Isso aparece nas artimanhas que alguns presos usam para ter dinheiro no bolso, como o contrabando de bebidas, doces, omitidos da administração principal. Aleksander também fala que o preso, por ter algumas moedas tilintando no bolso, volta a ter a sensação de um cidadão livre.

Meu contato com a literatura do escritor, meu leva a concluir que seu interesse principal era explorar o mistério e a psique humana. Suas motivações não eram políticas, não havia intenção de crítica quanto ao sistema prisional russo - com seus trabalhos forçados e castigos físicos. Uma grande obra em minha opinião, pela capacidade de Dostoievski de avaliar essas pessoas (consideradas o pior tipo de gente), sem restrição moral alguma, e com isso enriquecer sua forma de enxergar o mundo, ao descobrir em si novos sentimentos.



[1] Outra grafia: dezembrista. O movimento recebeu esse nome, pois teve ápice em 14 de dezembro de 1825.

[2]  A edição mais recente do romance, traduzida por Nicolau S. Peticov e publicada pela Editora Nova Alexandria em 2015 inclui  a carta de Dostoiévski para o irmão, de onde tirei essa frase.