O OUTRO LADO DA MOEDA: DINHEIRO E PODER EM “CIDADE DE DEUS”

O OUTRO LADO DA MOEDA: DINHEIRO E PODER EM “CIDADE DE DEUS”

O OUTRO LADO DA MOEDA: DINHEIRO E PODER EM

“CIDADE DE DEUS”

 

                                      

Por Luciana Carvalho dos Reis1

 

            Publicado em 1997, o romance de estreia do escritor carioca, Paulo Lins, narra num ritmo frenético à pluralidade das culturas fronteiriças geradas pelas crescentes diferenças sociais. Entretanto, cabe salientar que a obra esboça, pura e simplesmente, as condições humanas entregues à vulnerabilidade e à incredulidade – implacáveis ao subterrâneo universo do que conhecemos e/ou entendemos por “favela”.

            Sob o signo do assustador e ainda temido “efeito da realidade”, Lins tece com habilidade cinematográfica, uma narrativa recheada de sordidezes, tragédias e violências – físicas, simbólicas, psicológicas e sociais.

            Infindáveis são as temáticas que poderiam ser desenvolvidas a partir da leitura do romance – especialmente quando, em alguns momentos, ou por falta de objetividade científica, ou por instinto, nos deixamos levar pelos memoráveis recortes do filme dirigido por Fernando Meireles.

            Esse breve ensaio, contudo, se ateve as reflexões modestas acerca das simbólicas representações de dois “elementos-chaves” que permeiam o cruelíssimo mundo de Cidade de Deus: o “dinheiro” e o “poder”.

            Não se trata de associar a criminalidade e a violência às questões sociológicas do dinheiro e do poder. Deixemos essas relações para outra ocasião. O objetivo aqui é bem mais simples e menos pretencioso: observar e refletir sobre algumas noções e vivências das personagens da favela “Cidade de Deus” em relação ao dinheiro e ao poder.

            A começar pelo dinheiro. Em um ambiente marcado pelo tráfico, pelo uso recorrente de drogas e entorpecentes, pela miséria, pela violência e pelas condições subumanas – destacadas, ora em detalhes minuciosos e, muitas vezes dolorosos; ora em homéricas descrições – o “outro lado da moeda” é bastante exaltado.

            Enquanto submersos nesse (sub)mundo dos morros e da miséria, as personagens, de modo geral, vislumbram os luxos, as mordomias e as melhores condições de um universo “além-favela” – vislumbro este, reforçado pelo narrador e que pode ser analisado logo nos primeiros parágrafos do romance, em que, ao descrever as recomendações do personagem Busca-Pé, o próprio narrador deixa escapar, com ironia e crueza:

 

Era infeliz e não sabia. Resignava-se em seu silêncio com o fato de o rico ir para o exterior tirar onda, enquanto o pobre vai pra vala, pra cadeia, pra puta que o pariu. (LINS, 2002, p. 12).

 

            “Ir para o exterior tirar onda” perpassa quaisquer dúvidas acerca do que já está socialmente “instaurado”: essa é uma condição do rico – assim como muitas outas condições pré-estabelecidas pelo mordaz estamento e pelas estratificações sociais – e é a própria linguagem utilizada por Paulo Lins que corrobora com a delimitação entre a favela e o “além-favela”, pois rico vai “para” e o pobre vai “pra”.

            Ao fim e ao cabo, o olhar “no outro”, o observa do que está supostamente demarcado e longe do alcance do morador da favela Cidade de Deus são inferências recorrentes na narrativa de Lins e, portanto, molas propulsoras das situações em que o dinheiro – palavra repetida por diversas vezes no livro – e o poder estão deliberadamente envolvidos.

            No lugar em que as crianças “detestavam a noite, porque ainda não havia rede elétrica” (LINS, 2002, p. 19), a vontade de matar torna-se inerente ao ódio advindo do poder do outro, ou em linhas gerais, o “ter” influencia diretamente o “ser” e o “estar”:

 

Sentiu vontade de matar toda aquela gente branca, que tinha telefone, carro, geladeira, comia boa comida, não morava em barraco sem água e sem privada [...] (LINS, 2002, p. 23).

 

            Dessa forma, é possível crer que se as condições de existência fossem mais favoráveis aos que na favela “Cidade de Deus” vivem – como aos que vivem em quaisquer favela, a ideia do estranho/estrangeiro – ou seja, daquele que não vivencia o sofrimento e as dificuldades de quem mora no morro – não seria equiparada imediatamente à ideia de inimigo, e o ódio não se transformaria em ações tão brutais de violência.

            Quaisquer sinais de (in)diferença, de risco de não-satisfação, de não reconhecimento pode reconduzir à experiência do desamparo primordial e aos becos sombrios e tenebrosos da violência contra o outro que nos ameaça – e assim parecem ser as personagens de Cidade de Deus: ameaçadas e sufocadas pelo sofrimento e pela dor de não possuir as mínimas condições de existência que o “além-favela” possui.

            Nessas condições, o desejo pelo primordial (ter comida, luz, saneamento básico, dentre outros) parece, contudo, desencadear, no livro de Paulo Lins, um desejo pelo que está além do supostamente necessário, ou, de forma concisa, a sedução pelo dinheiro e pelo poder – o que se estabelece e se relaciona não só ao universo do “além-favela”, como perpassa todas relações e hierarquizações previamente demarcadas dentro da própria Cidade de Deus: muitas personagens, por exemplo, almejam ser donos de bocas de fumo, ganhar muito dinheiro com a venda de drogas, estar bem vestido, ser respeitado e/ou temido dentro da favela.

            O “outro”, então, passa a ser, não só o que está fora do universo de Cidade de Deus, “o estranho”, “o diferente”, como qualquer um que almeje o poder e o dinheiro existentes contraditoriamente nesse ambiente de pobreza e miséria que entendemos por favela.

            A possibilidade de criar projetos de vida, o direito de pertencer a um grupo, de ter condições dignas de sobrevivência, de ter realização no trabalho ou poder fazer do trabalho um meio para ganhar dinheiro e realizar outros sonhos são situações tidas em Cidade de Deus como utópicas, em outras palavras, “fora da realidade” de quem nasceu e cresceu dentro da favela.

            E se o que é implícito falhou, ou se tornou insuficiente, corre-se o risco da re-instauração da lei “olho por olho, dente por dente” – ou das apatias, do desafeto, do sofrimento doentio que exacerba aquilo que é próprio da dor de existir. Mais uma vez o “ter” diante do “ser”, preconizando a violência:

 

Antigamente, comentavam pasmados os moradores, somente os miseráveis compelidos por seus infortúnios, se tornavam bandidos. Agora esta tudo diferente, até os mais providos da favela, os jovens estudantes de famílias estáveis, cujos pais eram bem empregados, não bebiam, não espancavam suas esposas, não tinham nenhum comprometimento com a criminalidade, caíram no fascínio da guerra. Guerreavam por motivos banais: pipa, bola de gude, disputas de namoradas. As áreas dominadas pelas quadrilhas viraram verdadeiros fortes, quartéis generais dos soldados, cujo acesso era dado a bem poucos; os que ignoravam esse fato viam-se expostos à humilhação pública, ao esculacho por morarem em áreas desse ou daquele inimigo ou por serem amigos de um quadrilheiro também inimigo. A guerra, assim tornou proporções maiores, motivo original não significava mais nada. (LINS, 2002, p. 350).

 

         Freud, em seu artigo “Futuro de uma ilusão”, ao discorrer sobre as guerras, chama a atenção para aspectos dessa questão, afirmando que:

 

É de supor que as classes abandonadas invejarão os privilégios das classes favorecidas e farão todo o possível para libertar-se do aumento especial de privação que pesa sobre elas [grifo nosso]. Caso não o consigam, surgirá na civilização correspondente um descontentamento duradouro que poderá conduzir a rebeliões perigosas. Mas quando uma civilização não consegue evitar que a satisfação de um certo número de seus participantes tenha como premissa a opressão de outros, talvez da maioria – e assim sucede todas as civilizações atuais – é compreensível que eles mesmos sustentam com o seu trabalho, mas de cujos bens participam muito pouco [...] (FREUD, 1996, p. 13).

 

            A intolerância ao menor sinal de desvalia, de exclusão e de sofrimento revela-se nas depressões, nos sofrimentos do corpo, nas cenas crescentes de violência que o narrador descreve friamente e na busca compulsiva de saídas imediatas – a violência, por exemplo – que visam a ajudar as personagens angustiadas de Cidade de Deus a suportar melhor esse mal estar em relação ao dinheiro e ao poder pertencentes aos outros – ou pelo menos a conviver com ele.

            Como essa convivência não é apresentada na narrativa de Lins como pacífica tem-se o outro lado da moeda, desencadeado como um vasto campo para o uso de drogas, para o tráfico e, principalmente, para as práticas perversas e frias de violências físicas e simbólicas – tudo regido pelo dinheiro e pelo poder.

            Assim, o dinheiro e o poder, naquele ambiente da favela Cidade de Deus, são enfatizados, não só em função de uma trágica realidade social, como também pela afirmação violenta de força sobre o corpo e sobre a vida do outro – daí as mortes, os assassinatos e os estupros por “motivos banais”.

Referências Bibliográficas:

 

FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud (v.XXI): o futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LINS, Paulo. Cidade de Deus. 2ª edição revisada pelo autor. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

___________. Paulo Lins: Quando se dá fome, o resto do mundo é inimigo. Cidadania na internet. 17 jul. 2003. Publicação digital. Disponível em:. Data do último acesso: 15/01/2012.

ZALUAR, Alba Maria. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Ed.1ª, Ed. FGV. Rio de Janeiro, 2004.

 

Nota:

1Mestranda em Ciências da Educação pela Hiltbay University, Massachusetts/ USA, docente concursada pela Secretaria Estadual de Educação do Estado do Espírito Santo (SEDU), Brasil, Contato: luciana.reis@educador.sedu.es.gov.br