Notas Críticas do Romance Sexta-Feira ou Limbos do Pacífico, de Michael Tournier (1967)

Notas Críticas do Romance Sexta-Feira ou Limbos do Pacífico, de Michael Tournier (1967)

Notas Críticas do Romance Sexta-Feira ou Limbos do Pacífico, de Michael Tournier (1967)

 

         Giuliano de Méroe

 

O livro de Michael Tournier foi escrito a partir de uma história mais antiga, de Daniel Defoe: As aventuras de Robinson Crusoe. Segundo a literatura clássica inglesa, o autor tomou conhecimento das anotações deixadas pelo Capitão Wood Rogers que em 1709 ancorou o navio Duke na ilha Juan Fernandes, no Pacífico, e recolheu o náufrago Alessander Selkirik.

Tratava-se de um timoneiro escocês que não se dava bem com o capitão e assim decidiu desembarcar na ilha Juan Fernandez com sua bagagem, permanecendo ali por quatro anos e quatro meses.                                                                  

No posfácio, Defoe nos diz: “A história é contada com modéstia, seriedade e com um propósito religioso ao quais homens sensatos sempre se dedicam, isto é, para a instrução de outros (...); não há nela qualquer aspecto de ficção: E quem imaginar – porque todas essas coisas são discutíveis que servira tanto para a distração quanto para a instrução do leitor, que assim seja (...).

Michel Tournier influenciado pelos contágios quis reescrever a história com outro foco, inserindo um corpo filosófico e psicanalítico mais amplo. Em sua versão, ele faz aparecer diante do pensador solitário Robinson um primitivo, que foi nomeado por este de Sexta-Feira, que com seus gestos primitivos, irreconciliáveis com o modo de ser civilizado de Robinson, o provocava e desconcertava toda organização, planejamento e administração que havia feito para a ilha Speranza.

O elemento principal desta história é bem diferente da original. Em Defoe, Robinson é instado a pesquisar sobre suas origens e com isso remonta um mundo modelado a partir das estruturas que conhecia do mundo civilizado. Aqui, o problema adquire uma carga filosófica mais pesada: A existência de um Eu e de um Outrem.

Este será um dos problemas existenciais que Robinson se defrontará ao longo de sua jornada e, nisso põe em cheque as Teorias do Conhecimento em Filosofia, que a exemplo de Jean Sartre, na Obra O Ser e o Nada, criam um dualismo entre sujeito e objeto. A teoria de Sartre é a teoria de Outrem.  Ele constrói a teoria a partir de um ‘olhar’, em que outrem pode ser um objeto (qualquer objeto no campo perceptivo) ou sujeito (ainda que fosse outro sujeito para um campo perceptivo), mas sua teoria ainda repousa nas categorias de sujeito e objeto, em que outrem é aquilo que me constitui como objeto quando me olha e, se converte em objeto quando o olho.

Esse clássico dualismo esboroa aqui, pois o problema não é mais colocado entre sujeito e objeto, mas numa estrutura diferente – um mundo com outrem (outrem não é o outro, ele é uma condição que estabelece um possível envolvido, e um mundo na ausência de outrem (sem a estrutura que torna os mundos possíveis).

Essa é a tese que encontramos no Robinson de Tournier, o verdadeiro dualismo, portanto, encontra-se entre os efeitos da estrutura outrem no campo perceptivo e os efeitos de sua ausência. Outrem não é uma estrutura entre outras no campo da percepção (em que podemos reconhecer um sujeito ou objeto), ele é a estrutura que condiciona o conjunto de campo e o funcionamento deste conjunto, outrem torna a percepção possível.

Eis o drama de Robinson na frase: “Os faróis desapareceram do meu campo”. Alimentado pela fantasia, sua luz ainda por longo tempo veio até mim. “Agora acabou: rodeiam-me as trevas”.

Outrem é que constitui no mundo um conjunto de bolhas que contém mundos possíveis: eis o que é outrem. A partir daí outrem faz com que minha consciência caia necessariamente em um “eu era”, em um passado que não coincide mais com o objeto. Eu nada sou além dos meus objetos passados, meu eu não é feito senão de um mundo possível passando precisamente aquele que outrem faz passar. Outrem é um mundo possível, eu sou um mundo passado.

A salvação do náufrago Robinson, segundo aguda observação de Deleuze, é entrar em outra estrutura, não a do outrem, mas a do perverso (perverso aqui no contexto da estrutura, em que substitui os possíveis engendrados pelo outrem). Pois já não existe um eu segundo as categorias de outrem, mas somente um elemento puro, desprendido das condições determinadas pelo outrem construído das civilizações. Este elemento puro é o ‘duplo’ de Robinson, seu “eu voador” despojado totalmente de qualquer peso.