Memórias de um Caçador - Ivan Turguêniev (1818-1883)

Memórias de um Caçador - Ivan Turguêniev (1818-1883)

O escrito abaixo, que adotamos como resenha em homenagem à sua objetividade, refere-se ao livro Memórias de um Caçador, de Ivan Turguêniev (1818-1883), traduzido diretamente do russo e publicado pela Editora 34, em 2013.

Segue-se o texto de Fátima Bianchi, transcrito da obra citada[1]:

“Numa de suas querelas com Turguêniev por divergências ideológicas acerca da questão Rússia-Ocidente, Dostoiévski o teria acusado de nunca ter conhecido nem compreendido sua terra natal e o aconselhado a comprar um telescópio em Paris para examiná-la à distância, uma vez que escrevia sobre Rússia radicado na Europa. Já Turguêniev afirmava que justamente o fato de contemplar de longe lhe permitia entender sua pátria atrasada, submetida ao poder despótico da autocracia.

Criados quase todos no exterior, os 25 contos que compõem as Memórias de um caçador- traduzidos diretamente do russo por Irineu Franco Perpetuo – se unificam pela figura do narrador, um jovem caçador de origem nobre, e estão sem dúvida entre as maiores obras de Turguêniev. Até a publicação do primeiro conto, “Khor e Kaínitch”, em 1847, que imediatamente foi tomado como uma manifestação de seu gênio artístico, suas investidas em literatura haviam se restringido ao campo da poesia. Não é de admirar, portanto, a qualidade poética da coletânea, que por si só salta aos olhos, particularmente nas evocações líricas da natureza. O maior impacto provocado por ela, no entanto, deveu-se à sua relevância social e política, uma vez que nas entrelinhas se identificava facilmente o mal da servidão, que, aliás, sequer é mencionada explicitamente.

Apesar do título, a caça no livro não passa de um pretexto de que se serve o narrador para penetrar nas matas e aldeias russas e revelar ao leitor de seu país, em primeira mão, aquilo que ele viu e ouviu. Enquanto foram sendo publicados isoladamente, cada um deles trazendo o subtítulo Memórias de um caçador, os contos pareceram inofensivos e sequer chamaram a atenção da censura. Porém, quando reunidos em 1852, revelaram-se perigosos e incendiários.

De fato, o andamento das narrativas chega por vezes a ser cruel. Por trás do polimento impecável do estilo, do tom contido, que permitiu ao autor expor, sem cinismo ou sentimentalismo, seu talento singular para a compaixão tácita, sobressai uma indignação, um sentimento íntimo de protesto contra um estado de coisas desumano. Fonte de riqueza da aristocracia, esta quase sempre apresentada como insensível e bárbara, os camponeses se revelavam, pela primeira vez numa obra da literatura russa, para surpresa do leitor, como seres humanos dotados de sentimentos reais, como a imaginação, o talento artístico, poético e, o principal, um senso agudo da própria dignidade.

Nos contos, Turguêniev procura destacar o mundo interior dos camponeses contra o pano de fundo da natureza, como a qual eles se encontravam em ligação indissolúvel e da qual pareciam tirar a própria força vital. Das condições degradantes de sua existência, de uma rudeza quase bestial, ele arranca tipos humanos inesquecíveis, como Lukéria em “ Relíquia viva”. Ou os meninos em “ O prado de Biejin”, um dos contos mais envolventes da coletânea, que em 1937 serviu de inspiração a uma produção homônima de Serguei Eisenstein e que revela o quanto a percepção da natureza pelos camponeses estava ligada à superstição.

Tanto por sua orientação contrária ao regime tirânico de servidão, como por seu valor literário, a publicação de Memórias de um caçador causou profunda impressão no leitor de sua época. Conhecido também como A cabana do pai Tomás da Rússia, o livro foi um dos fatores que mais influência exerceram para a emancipação dos servos em 1861. ”

 



[1] Capas internas do livro.