Falha a Fala. Fala a Bala: Trocadilho que delimita fronteiras em cidade de Deus, Romance de Paulo Lins

Falha a Fala. Fala a Bala: Trocadilho que delimita fronteiras em cidade de Deus, Romance de Paulo Lins

FALHA A FALA. FALA A BALA: TROCADILHO QUE DELIMITA FRONTEIRAS EM CIDADE DE DEUS, ROMANCE DE PAULO LINS

FAIL TALKING. BULLET SPEAKS: PUN DELIMITING FRONTIERS IN CITY OF GOD, ROMANCE OF PAULO LINS

 

Luciana Carvalho dos Reis1

 

Resumo: Após viver durante vinte anos em Cidade de Deus, Paulo Lins protagoniza esse espaço, porém, o que ganha visibilidade não são os trabalhadores, mas os que vivem na criminalidade ou em torno dessa. Interessante que essa visibilidade é dada às personagens masculinas, que parecem refletir a imposição machista do homem. A proposta apresentada aqui visa a observar os aspectos que emanam as fronteiras estabelecidas entre dois mundos, a favela e o além-favela, sobretudo a delimitação de territórios impostos pelos próprios traficantes e pela sociedade. Ressaltando ainda a linguagem que o narrador nos oferece e que nos torna pactários e testemunhas de toda uma barbárie, e o abismo linguístico entre narrador e personagens. Cidade de Deus é o espaço liminar marcado pelo báratro da exclusão, seus habitantes são sujeitos fronteiriços excluídos de um território social dominante e de suas formas de organização.

 

Palavras-chave: Cidade de Deus. Fronteira. Linguagem.

 

Abstract: After living for twenty years in City of god, Paulo Lins stars in this space, however, which has gained visibility, not workers, but those who live in or around this crime. Interesting that this visibility is given to male characters, who seem to reflect the imposition of the macho man. The proposal presented here is intended to observe the aspects emanating from the boundaries established between two worlds, the slum and beyond the slum, especially the division of territories imposed by traffickers themselves and society. Noting also the language that the narrator offers us and makes usall witnesses and pactários barbarism, and linguistic gap between narrator and characters. City of God the luminal space marked by abyss exclusion, its inhabitants are excluded subjects of a border territory and its dominant social forms of organization.

 

Keywords: Cidade de Deus. Border. Language.

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1 Mestranda em Ciências da Educação pela Olford Walters University, Estados Unidos. Foi aluna especial em Estudos Literários na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e Pós-graduanda em Língua e Literatura Espanhola pela Faculdade de Tecnologia de São Francisco (FATESF), pertence ao Grupo de Estudos Interdisciplinar de Transgressão (GEITES) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Docente concursada pela Secretaria Estadual de Educação do Estado do Espírito Santo (SEDU), Brasil, Contato: luciana.reis@educador.sedu.es.gov.br

 

 

 

 

 

 

 “[...] O mundo migra, e dá de cara com fronteiras

as chaves são as mesmas!”

 

 

A contextualização: delimitando fronteiras

 

Antes de analisar as proposições fronteiriças na obra Cidade de Deus (1997/ 2002) do escritor carioca Paulo Lins, ressaltamos os vários elementos que tecem a teia entre o espaço do sertão e o espaço da narrativa. Primeiramente relataremos a associação emblemática entre a imagem da favela e as descrições do povoado de Canudos, enaltecendo a dicotomia litoral versus sertão na obra de Euclides da Cunha, Os Sertões2 e ao que depois se notabilizou como dualidade Cidade de Deus versus favela3. E é na favella4, antigo morro da Providência, que vão se abrigar os combatentes de Canudos na tentativa de “pressionar o ministério da guerra a pagar seus soldos atrasados”5. Mas, anteriormente a essa fase, eram os cortiços verdadeiros locus de infortúnio da cidade do Rio de Janeiro.

No governo Pereira Passos (1902-1906), período conhecido popularmente como “Bota-abaixo”, visou-se o saneamento, o urbanismo e o embelezamento, dando ao Rio de Janeiro ares de cidade moderna e cosmopolita, já que na ocasião a cidade possuía uma estrutura colonial e quase um milhão de habitantes carentes de transporte, abastecimento de água, rede de esgotos, programas de saúde e segurança. No centro do Rio de Janeiro eclodiam habitações coletivas e insalubres, além de epidemias de febre amarelavaríolacólera, conferindo à cidade a fama internacional de porto sujo ou "cidade da morte".

 

 

 

 

 

 

 

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2 Em referência ao trecho de Os Sertões intitulado Favela, Euclides da Cunha usa o termo “morro da favela” para designar a área ao redores do arraial: “Porque o morro da favela, como os demais daquele trato dos sertões não tem mesmo o revestimento bárbaro da caatinga. É desnudo e áspero.(...) Entretanto, embora desabrigado, quem o alcança pelo sul não vê logo o  arraial, ao norte. Tem que descer, como vimos em suave declive, a larga plicatura em que se arqueia, em diedro, a montanha, numa selada entre lombas paralela.” (op. Cit., p. 380)

3 Em alusão a obra A invenção da favela – do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005; p. 23.

4Em referência a grafia original da palavra  favella.

5 Em alusão a obra A invenção da favela – do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005; p. 26.

Décadas depois, a política de remoção dos aglomerados que abrigavam as vítimas da enchente de 1966, os nordestinos e os moradores do Esqueleto – lugar em que constava uma estrutura de concreto predial e que abrigava um grupo de flagelados tomou corpo no começo dos anos 1960, durante o governo de Carlos Lacerda (1960-1965) e a implementação dessa política situou-se na Zona Sul da cidade, no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas. Assim houve a transferência dessas pessoas para a Zona Oeste, região autorizada para a construção dos conjuntos habitacionais. Nasce então na baixada de Jacarepaguá a Cidade de Deus, com nome inspirado na Cidade de Deus de Santo Agostinho - a qual tratava de uma descrição da cidade divina, uma Jerusalém Celeste (seria interessante se o nome do conjunto pudesse atrair seus moradores).

Vale lembrar que a intenção do governo era retirá-los da paisagem da cidade maravilhosa. As habitações foram arquitetadas pela COHAB (Companhia de Habitação Popular) e financiadas pelo BNH (Banco Nacional de Habitação) e terminaram de ser construídas após o governo Negrão de Lima. Seus projetos foram executados em 1968: o primeiro, em área total de 253.810 m2, limitado entre a Avenida Ezequiel, Rua Moisés e Rua Edgar Werneck; o segundo, em área total de 36.343 m2, constando de 159 lotes e oito ruas, entre a estrada da Estiva (atual Miguel Salazar) e a Avenida do Rio Grande; e o terceiro, em outubro de 1968, abrangendo a maior área, com mais de 120 logradouros, incluindo ruas, travessas, praças, todas batizadas com nomes bíblicos, estabelecendo assim uma relação metonímica entre o nome do conjunto Cidade de Deus e suas vielas.

Cidade de Deus era localizada na Zona Oeste do Rio de Janeiro, próximo aos bairros Barra da Tijuca e Jacarepaguá e, portanto, agora perto de símbolos de luxo como Barra Shopping e New York City Center, também era o conjunto maior, tendo inicialmente 6.658 unidades habitacionais, ao passo que a Vila Kennedy reunia 5.509 unidades e a Vila Esperança ou Vila Aliança (no romance essa é apontada como Santa Aliança), apenas 464 unidades.

Várias favelas, mesmo que distantes, faziam parte do cenário da Cidade Maravilhosa, assinalando assim o que seria um empecilho ao espaço urbano. Estavam demarcados os espaços fronteiriços. Para esses espaços voltaremos nossos olhares para construirmos a arquitetura teórica da nossa pesquisa. Iniciaremos pela compreensão da palavra fronteira informada por Homi Bhabha, essa considerada como sendo um local de trocas:

 

A fronteira que assinala a individualidade na nação interrompe o tempo autogerador da produção nacional e desestabiliza o significado do povo homogêneo. O problema não é simplesmente a “individualidade” da nação em oposição à alteridade de outras nações. Estamos diante da nação dividida no interior dela própria, articulando a heterogeneidade de sua população. A nação barrada Ela/Própria [It/Self], alienada de sua eterna a autogeração, torna-se um espaço liminar de significação, que é marcado internamente pelos discursos de minorias, pelas histórias heterogêneas de povos em disputa, por autoridades antagônicas e por locais tensos de diferença cultural. (BHABHA, 1998, p. 209)

 

Lins nos narra o crescimento populacional de Cidade de Deus e a formação da rede do tráfico de drogas que vai gerar inúmeras disputas e guerras ao longo dos anos sessenta e oitenta. O narrador onisciente se torna testemunha e nos confessa toda a barbárie desse espaço descontextualizado e descentrado, fragmentado de histórias. Lins, por ter vivido durante vinte anos na Cidade de Deus, recria de maneira brilhante a linguagem dos malandros, repleta de gírias e palavrões, dando originalidade a sua narrativa. O autor nos entrega o mundo dos excluídos, criminosos e favelados.

O pensamento na Cidade de Deus, que é um condomínio, é urbanizado. Mas a linguagem é o favelesco. Daí se define o que é uma favela. O tipo de vida é o mesmo das favelas. É onde moram os negros, os nordestinos, a miséria. É onde têm bocas de fumo, onde se improvisa sempre. É onde está o que não presta na sociedade. (LINS, 2002, p. 4)

 

            Deste modo podemos acompanhar as transformações linguísticas, geográficas e simbólicas da marginalidade. A situação exposta não mais corresponde a de cidade turística cheia de cordialismos, mas a de delimitação de territórios impostos pelos próprios traficantes e pela sociedade. Apesar de existir a tentativa de centralização do poder na favela, o fluxo caminha a lentos passos à descentralização e disputas por esses espaços.

 

 Falha a fala. Fala a bala: trocadilho que delimita fronteiras em Cidade de Deus

 

Inicialmente a escrita de Lins é marcada de poesia e certo lirismo exaltando o bucólico. O romancista em sua narrativa se apresenta como um narrador onisciente, pois sabe cada passo de seus personagens, ele age como testemunha de toda barbárie que acontece no romance e nos oferece sua palavra, tornando-nos pactários e testemunhas dessa sequência de crimes. Utiliza-se da terceira pessoa e de discurso indireto livre para nos confidenciar uma história ora real, ora fictícia uma vez que se embasou na pesquisa da antropóloga Alba Zaluar. Seus personagens reais se misturam aos personagens fictícios tecendo o romance de maneira intensa. Lins deixa emergir o tom verossímil ao declarar-se como narrador testemunha, pois viveu durante vinte anos nesse espaço para escrever seu romance. É interessante que o narrador por vezes assume a primeira pessoa do discurso: “Mas o assunto aqui é o crime, eu vim aqui por isso...” [destaque] (LINS, 2002, p. 20).

Assim o monólogo com base realista do narrador erudito, poético se cambia com múltiplas vozes populares, seus personagens são autônomos, fazendo com que o autor perca sua aura autoral dando espaço às histórias fragmentadas e a falares periféricos, mesclando ficção, realidade, documentário, história e reflexão etnográfica. É o que vem confirmar Bakhtin:

 

A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoievski. (BAKHTIN, 2010, p. 4)

 

Lins segue a sequência emissor, mensagem, receptor, enfatizando na mensagem característica da função referencial. Para isso utiliza-se de uma ampla pesquisa alusiva às gírias da época. Sabemos, então, que a narrativa descritiva foi construída a partir de uma linguagem que não é oficial, ou seja, a linguagem tenta suprimir as fronteiras entre escritor/personagens e personagens/tema da periferia.

Deste modo seguimos o trocadilho que a nós é oferecido: onde a “bala fala” é porque “falha a fala”, de acordo com a metáfora assertiva do romance. Mas a linguagem específica dos bandidos, por vezes, é a mesma de outros personagens não bandidos. Aos poucos ocorre uma contaminação do discurso do narrador pelo discurso dos personagens. Essa contaminação se dá pelo uso do discurso indireto livre, o que permite a percepção das reflexões sobre a situação vivenciada pelos personagens. Isso porque o narrador incorpora seus discursos na formulação dessa mesma reflexão. Mas, ao usar esse recurso, o autor expõe intensamente a tensão entre as classes, pois as escolhas linguísticas acabam por acentuar o distanciamento entre esses discursos, ampliando a separação que existe entre as diferentes camadas sociais.

É uma narrativa repleta de flashback.  Podemos observar logo no primeiro capítulo da obra o discurso do personagem Busca-Pé já estabelecendo fronteiras linguísticas, geográficas e culturais:

 

Doeu pensar na mosquitada que sugava seu sangue deixando caroços para despelarem-se em unhas, e no chão de valas abertas onde arrastara a bunda durante a primeira e a segunda infância. Era infeliz e não sabia. Resignava-se em seu silêncio com o fato de o rico ir para o exterior tirar onda, enquanto o pobre vai pra vala, pra cadeia, pra puta que o pariu. Certificava-se de que as laranjadas aguadas-açucaradas que bebera durante toda a sua infância não eram tão gostosas assim. Tentou se lembrar das alegrias pueris que morreram, uma a uma, a cada topada que dera na realidade, em cada dia de fome que ficara para trás. [destaque] (LINS, 2002, p. 12)

 

“Ir para o exterior tirar onda” nos remete à ideia da condição de rico, o que já está estabelecido socialmente, o rico vai “para” e o pobre vai “pra”. Neste contexto, o romancista atento para as observações do leitor enaltece a ideia do rico instruído, pois ele vai “para”, e o pobre do subúrbio com pouca instrução se utiliza de uma linguagem informal: pobre vai “pra”; desde já, estabelecendo os limites impostos pela sociedade aos moradores da favela e do além-favela.

Entre os dois mundos, a favela e o além-favela, o ensino aparece como linha enviesada. Dessa maneira, ora a instrução representa algo “inútil”, ora é uma forma de se chegar ao trabalho e revelar a possibilidade de fugir à “morte certa.”

Entretanto, temos dois personagens que costuram toda narrativa: Busca-pé, uma espécie de alter ego de Lins, e Zé Miúdo. Suas infâncias são vozes do passado que “se cruzam com vozes no presente e fazem seus ecos se propagarem no sentido do futuro” (BAKHTIN, 2010, p. XII). Em outras palavras são os personagens que transpõem todo o romance, o que contribui para a ideia de serem eles os fios condutores da narrativa e da representação das possibilidades de vida na favela. Ambos pelo viés do êxito pessoal levado pelas “circunstâncias”.

À medida que Busca-pé vai se aproximando do mundo letrado, mesmo que de forma implícita – “Todo mundo que anda com ele é de faculdade. Se amarra nessa onda de política” (LINS, 2002, p. 299) – seu personagem perde força reduzindo-se a uma nota de três linhas:

 

Busca-pé, depois militar vários anos no Conselho de Moradores, casou e mudou, conseguiu se estabelecer como fotógrafo, mas volta e meia retornava à favela para visitar a mãe e rever os amigos. (LINS, 2002, p. 398)

 

Contrariamente, o personagem Zé Miúdo se fortalece à proporção que a violência cresce no romance. Entretanto, é quando a mãe de Inho consegue depois de tanto falar, ouvir a voz da redenção do filho: “Tá bão, tá bão... vou trabalhar de engraxate porque dá grana, agora esse negócio aí de voltar prender ler, num vô não!” (LINS, 2002, p. 156), que se percebe na escrita do autor um mundo letrado e iletrado, delimitado por um abismo que governa dois mundos: a favela e o além-favela.

Lins relativamente toma Memórias de um sargento de milícias por incorporar um estilo jornalístico e direto da linguagem das ruas. O autor não inventa seus personagens, “ele a pré-encontra já dada independentemente do seu ato puramente artístico, não pode gerar de si mesmo a personagem”, pois “esta não seria convincente”6. O romancista divide sua obra em três partes, como José Lins do Rego, em Fogo Morto. Cidade de Deus é uma obra tripartida, é um Fogo Morto urbano. O próprio autor em entrevista declara isso: “É tripartido, eu fiz tripartido, são três histórias, eu copiei esse livro, roubei. Só que botei na versão urbana. Recomendo aqui assim: antes de ler o Cidade de Deus leia Fogo Morto” (LINS, 2003a)7.

Aos poucos os capítulos da obra vão mostrando as transformações ocorridas no conjunto. O livro se divide de acordo com a história dos protagonistas da obra, que se divide em décadas: nos  anos  1960,   “A história de Inferninho”   narra   à   época  do   bandido    romântico,  sambista, malandro e expõe em outras linhas a miséria como contexto do crime em Cidade de Deus e os assaltos e    roubos     como   maneira de   executar a  criminalidade. Por isso o autor estruturou o primeiro capítulo do seu texto de forma que a maior parte das orações fosse composta por subordinação. Característica que o próprio escritor atribuiu ao seu discurso, assim assinala o abismo entre autor erudito e personagem iletrado, mais uma vez distinguindo os limites entre a favela e o além-favela.

Assim podemos exemplificar o momento em que Lins narra o assalto ao caminhão de gás executado pelo trio ternurinha, Inferninho coage o motorista: “Mandou que se deitasse com os braços estirados” ou ainda quando Marreco anuncia para os moradores pegarem as botijas durante o assalto: “Martelo anunciou a todos que o gás era por sua conta” (LINS, 2002, p. 22).

Já a segunda parte do romance relata os anos 1970, intitulada como “A história de Pardalzinho” e sintetiza o aumento, a austeridade e profissionalização no crime e no assassínio e terror como maneira de assegurar a paz, necessária para o comércio das drogas. É nessa fase que os bandidos entram para os crimes cada vez mais novos, e há a preocupação em atrelar a influência da música, o rock e o movimento hippie, a ascensão ao consumo de cocaína. Podemos observar quando a cocotada decide ir a um festival de rock, pois “Sempre

 

 

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6M. Bakhtin. Estética da Criação Verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins fontes, 2003, p. 184-185.

7Citação referente a entrevista concedida a Paulo Lins em publicação digital, disponível em:https://www.cidadania.org.br último acesso em: 28/11/2014.

 

ouviram falar que rock’ n’ roll, muito mais do que um gênero musical, era uma maneira de viver, e por isso mesmo se drogavam de fumo, cocaína, pico e chá durante as setenta e duas horas de rock’ n’ roll comendo solto dia e noite em Magé” (LINS, 2002, p. 206).

E os anos 1980, a “História de Zé Miúdo”, referindo-se assim à terceira parte do romance onde há guerra das quadrilhas, do aumento da violência “irrefletida” ou da guerra por motivos “banais” (LINS, 2002, p. 350), em que a violência desenvolveu sua própria lógica inescapável. Lins descreve essa situação de guerra através do uso de gírias e conceitos diferentes, pelas orações coordenadas. Todavia essa observação é nítida na fala de seus personagens que imprimem o ritmo frenético, “pois as coisas são rápidas, mais intensas, há mais pessoas envolvidas”(LINS, 1997, p. 12). Uma das marcas do livro, que por sinal o torna ainda mais interessante, é a predominância da ausência de nomes dos personagens, em especial os protagonistas do romance. Vale lembrar que são poucos os personagens que possuem nomes e esses em nenhum momento se atam a sobrenomes, atribuição típica de (sub) classe, o que nos remete os limites estabelecidos pela sociedade entre a favela e o além-favela. O que vem afirmar Bauman:

 

O significado da identidade da subclasse é a ausência de identidade, a abolição ou a negação da individualidade, do rosto – esse objeto do dever ético e da preocupação moral. Você é excluído do espaço social em que as identidades são buscadas, escolhidas, construídas, avaliadas, confirmadas ou refutadas. (BAUMAN, 2005, p. 46)

 

Então há a repetição sistemática de termos designando espécie de “supercategorias” que indicam fatores de caracterização externa dos personagens. Assim o uso de termos como o nordestino, a grávida, a cearense, o viciado, a vítima, a mulher, o agressor reduzem os sujeitos a marcas sociais que, em geral os desqualificam. Nesse plano as personagens só têm existência pelo caráter externo, e mais grave pela barbárie. Desse modo somos apresentados a indivíduos que sequer têm nome, mas os quais identificamos imediatamente pela função, histórico e tipo. Vemos, portanto a passagem de um termo geral a categoria de símbolo.

Mudam-se os nomes de alguns personagens, inclusive os protagonistas. Assim também são relevantes os trechos inteiros e personagens secundários que foram excluídos da história, por sugestões de editores8,     o que nos faz pensar     na influência do      filme e na     ideia   de

 

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8 Em alusão à duas entrevistas do autor uma concedida a Revista Caros Amigos (Ano VII, nº74. São Paulo: Casa Amarela, 2003) outra o site Portal Quixote (https://www.quixote.com.br) numa entrevista em 16 de maio de 2001.

tornar o livro mais aceitável a um leitor médio. Outro fator apontado pelo autor que incidiu entre a primeira e segunda versão foi o número de processos que ele estava sofrendo por parte das pessoas que se autorreconheceram na obra e que queriam ser indenizadas pelo uso de seus nomes. Esses processos aconteceram após a representação fílmica do romance, já que os reclamantes não se encaixavam em um público leitor. Dessa maneira, a obra se tornou mais comercializável e atraente, o corte feito ao número de páginas - foram mais de 140 - corresponde à média quantitativa das produções recentes disponibilizadas no mercado literário.

Segundo Roman Jakobson em Linguística e Comunicação, todo signo linguístico implica em dois modos de arranjo: a combinação e a seleção:

 

A combinação. Todo signo é composto de signos constituintes e/ou aparece em combinação com outros signos. Isso significa que qualquer unidade linguística serve, ao mesmo tempo, de contexto para unidades mais simples e/ou encontra seu próprio contexto em uma unidade linguística mais complexa. Segue-se daí que todo agrupamento efetivo de unidades linguísticas liga-as numa unidade superior: combinação e contextura são as duas faces de uma mesma operação.

A seleção. Uma seleção entre termos alternativos implica a possibilidade de substituir um pelo outro, equivalente ao primeiro num aspecto e diferente em outro. De fato, seleção e substituição são as duas faces de uma mesma operação. (JAKOBSON, 1975, p. 39-40)

 

O linguista afirma que os métodos de associação decorrem das leis da mente e são inerentes ao desenvolvimento de qualquer processo criativo. O primeiro pesquisador a investigar as formas básicas de associação – similaridade e contiguidade – foi David  Hume, mas  é  com  Peirce que se chega a resultados mais claros da distinção dessas formas  utilizadas como  eixos de  estruturação do pensamento e, portanto, da linguagem. Para o autor, nas associações por contiguidade, o sistema de pensamento, decorrente da experiência, é o mais simples de todos os raciocínios. São específicas da contiguidade as organizações mentais decorrentes da causalidade, que obedecem a uma lógica discursiva ou linear, de causa e efeito, de princípio, meio e fim, enfim, associações estruturadas ou por subordinação, por uma hierarquia, portanto, cujas partes do signo mantêm entre si relações de proximidade. Já na associação por similaridade, o sistema decorre de situações mentais analógicas de semelhança, estruturadas por coordenação. Se buscarmos relações com a teoria de Saussure, contiguidade e similaridade, respectivamente, passam a sugerir os dois eixos de linguagem definidos pelo próprio linguista: sintagma (subordinação / combinação de elementos / reunião) e paradigma (justaposição / seleção de elementos / modelo).  Enquanto predomina a hierarquia na associação por contiguidade, predomina na similaridade a construção de caráter justaposto, própria da similaridade ou semelhança. Nos moldes peirceanos, podemos relacionar os símbolos aos signos que se organizam por contiguidade ou por um processo de combinação ou construção da sequência; os ícones, aos signos que se organizam por similaridade ou pelo processo de seleção que se “perfaz com base na equivalência, semelhança e dessemelhança, sinonímia e antonímia (...)” (JAKOBSON, 1975, p. 130). Os índices funcionam aqui como fronteiras. Desta forma, os signos por contiguidade estariam mais presentes na linguagem verbal; enquanto que na similaridade seriam privilegiados os signos de natureza não verbal. 

Seguindo ainda os passos de Jakobson, resta dizer que são duas as figuras de retórica que predominam nesses processos: a metonímia e a metáfora. A metonímia constitui-se como parte de um todo, designa objetos que são fragmentos da realidade. Tomar a parte pelo todo prevalece no eixo da combinação. Já a metáfora prevalece no eixo da seleção, à medida que estabelece relações de semelhança entre duas coisas.

São vários os recursos estéticos utilizados para expressar o horror, o estranho e o grotesco e o seu grau de repetição promove o efeito da violência entre estes espaços fronteiriços. E essa mesma repetição traduz o desgaste. São inúmeras as expressões metafóricas que se repetem na obra: “silêncio esmagador”, “palavra silenciada”, “silencia a terra muda”. E ainda: “o ódio da pobreza, as marcas da pobreza, o silêncio da pobreza e suas hipérboles eram jogadas através das retinas na face do engraxando” (LINS, 1997, p. 188). “Famintos devoraram três galetos conseguidos em um assalto feito a uma lanchonete no largo da Taquara, onde chegaram armados até os dentes” [destaque] (LINS, 1997, p. 297). Os conflitos em Cidade de Deus são alcançados pela quebra de paralelismo semântico: “Homem sério, mulher séria, filho sério, tiro sério, miséria séria, a morte certa.” (LINS, 1997, p. 187). O autor prossegue afirmando:

“É que arrisco a prosa mesmo com balas atravessando os fonemas. É o verbo, aquele que é maior que o seu tamanho, que diz, faz e acontece. Aqui ele cambaleia baleado. Dito por bocas sem dentes nos conchavos de becos, nas decisões de morte.” (LINS, 2002, p. 21).

Outro recurso que pode ser observado na obra é a alteração da forma verbal “está”, nas falas dos personagens, que sofre redução para tá, que lembra o estampido de uma arma: “-Tá com medo da mamãezinha?” (LINS, 2002, p. 19). O recurso é utilizado ainda para comparar o funcionamento do relógio: “O tique-taque do relógio de parede soava-lhe como tiroteio.” (LINS, 2002, p. 149) evidenciando ainda mais a violência.

A utilização de tais recursos promove um efeito metalinguístico, a exemplo quando o autor faz referência a “Matar, matar, matar... verbo transitivo exigindo o objeto direto ensanguentado” (LINS, 2002, p.185). Partindo de Jakobson ainda podemos estreitar as fronteiras que existem entre os nomes dos personagens da primeira edição 1997 com os nomes da segunda edição 2002 de “Cidade de Deus”. Estabelecemos, então, uma relação de semelhança e até mesmo de contiguidade entre esses nomes. Citaremos alguns dos mais de cem personagens do romance seguindo o esquema: 2ª versão (1ª versão).

No eixo de semelhança encontram-se os nomes dos personagens Zé Miúdo (Zé Pequeno), dois adjetivos com o mesmo valor semântico. Aqui podemos evidenciar não apenas a forma física do personagem, mas a ironia que se estabelece em torno desse. Miúdo era pequeno na estatura, mas grande e poderoso em relação ao poder paralelo, tornou-se chefe do narcotráfico na Cidade de Deus ao completar dezoito anos de idade. Nesse contexto podemos observar que o autor utilizou-se da semelhança entre os nomes e da oposição ao referir-se ao poder do personagem. Zé Bonito (Manuel Galinha): na gíria a palavra galinha se refere a um sujeito galanteador, paquerador, deduz-se que seja bonito. Esse personagem era noivo da jovem mais bela do conjunto, a qual aguçou a desejo de Miúdo. É no terceiro capítulo que Zé Bonito tenta “vingar” o estupro da noiva e assim trava a batalha com o chefe do tráfico. Vale lembrar que, na segunda versão, o autor nomeou esses personagens com o mesmo nome “Zé”, como se quisesse enaltecer a semelhança entre eles. Apesar dos motivos de estar envolvidos na criminalidade serem diferentes, ambos estão matando e guerreando pelos territórios do tráfico na Cidade de Deus. Martelo (Alicate) ambos utensílios, ferramentas, Martelo pertence ao trio ternurinha. Amigo de Inferninho, sempre o ajudou nos assaltos, é interessante que o autor nas duas versões o nomeia como utensílio de trabalho. Martelo serve para pregar, bater e alicate para apertar e torcer, instigando ainda mais a violência. Alguns nomes nem chegaram a sofrer alteração, como se pode observar nos personagens Silva e Cenoura, que tiveram seus apelidos mantidos na segunda versão da obra; Carlinho Pretinho (Pretinho), onde apenas a segunda alcunha foi mantida; Verdes Olhos (Jorge Gato), fazendo alusão à natureza dos gatos de apresentarem geralmente os olhos verdes; Belzebu (Touro), lembrando a figura do touro o enigmático belzebu. Tanto o touro como belzebu lembra o mal. O leitor atento observa a inversão de valores que há na obra (vale lembrar que os moradores do conjunto são presenteados pelos traficantes). Fazendo um elo entre semelhança e contiguidade, encontramos Passistinha (Salgueirinho). O passista faz parte da escola de samba, é um componente nesse caso da escola Salgueiro. E a escola de samba por sua vez lembra seus componentes pelo eixo da semelhança; em uma relação de contiguidade, Inho, utilizando o processo de redução da palavra (Dadinho): retirou-se o radical Dad e permaneceu o sufixo de grau /iñ/ e a desinência de gênero /o/.

Interessante que os apelidos desses personagens remetem muitas vezes ao grau de periculosidade do traficante e ao preconceito que esses bandidos estabelecem em relação às características físicas, a exemplo: Cabeça de nós Todo (Cabeção) - em alusão a cabeça de cearense ou ainda Grande (Sergio Dezenove), fazendo referência aos dezenove assassinatos que o bandido cometeu. Vale ressaltar que esse bandido ficou conhecido no romance também por Grande devido a seus dois metros de altura e ser o antigo chefe do tráfico de drogas. E para finalizar nossa exemplificação, o personagem Xerife (Xerife) – policial que faz escravos sexuais no presídio. É nessa brincadeira de nomear que os relatos se cruzam reciprocamente sobre a vida desses personagens. A propósito, vale dizer que o personagem Inho (Dadinho) troca de nome após uma série de crimes de que se incumbiu enquanto menor de idade. Ao completar dezoito anos, o jovem percebe que tem antecedência criminal e altera seu apelido para Zé Miúdo, ainda enfatizando sua aparência física, a altura.

 

-A boca daqui, da nova Macedo Sobrinho, é dum cara pequeno!- dizia Inho.

Sim, iria agora chamar-se Miúdo, Zé Miúdo, já que a polícia sabia da existência de um tal de Inho que não poupava as vítimas nos assaltos, que era tido como perigoso desde o tempo de Inferninho. “Mudar de nome: ideia responsa.” (LINS, 2002, p. 181-182)

 

Essa busca do novo “eu” que move Inho, agora Miúdo, nos faz refletir a nova condição do personagem. Assim pensamos na questão da identidade com Stuart Hall, para quem, a partir da segunda metade do século XX, assiste-se a uma “crise de identidade” do sujeito que, até então era pensado como um sujeito “centrado”. Para sedimentar sua teoria, Hall aponta o fato de haver três distintas concepções de identidade, referentes respectivamente: ao sujeito do iluminismo, ao sujeito sociológico e ao sujeito pós-moderno. O sujeito do iluminismo - dotado de razão, consciência e ação – via-se como que centrado em um núcleo interior que não se alterava ao longo da sua vida; o sujeito sociológico, por sua vez, continua sendo centrado em seu “eu-real”, porém se constitui a partir da relação dialógica com outros indivíduos, cujo papel é mediar a cultura do mundo habitado por esse sujeito. É nesse ponto que essa “identidade”, até então vista como unificada e singular, é alterada. A multiplicação de sistemas de representação e significação culturais ocorre paralelamente à descentralização do sujeito, pois segundo Hall,

 

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor do ‘eu’ coerente. Dentro de nós há entidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuadamente deslocadas. (HALL, 2005, p. 13)

 

Dessa maneira, o sujeito pós-moderno será “[...] conceitualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente”(HALL, 2005, p. 12). É esse sujeito sem centro ou “descentrado” que encontramos na figura de Miúdo após a mudança de nome. Zé Miúdo, agora com o corpo fechado, passa a ser o cabeça dos “negócios”, em outras palavras, o chefe do tráfico de drogas na Cidade de Deus.

Outro emblema é como esses personagens chamam os policiais, “samangos”, palavra de origem africana cuja significação é homem preguiçoso, indolente, descansado, maltrapilho, malandro. É emblemático, pois é nítida a ironia dessa ordem enviesada.

E nesse terreno nebuloso, onde as crianças “detestavam a noite, porque ainda não havia rede elétrica e a mãe proibia as brincadeiras de rua depois que escurecia” (LINS, 2002, p. 19) é que nascem as condições e a vontade de matar que se tornam inerentes ao ódio advindo do poder do outro ou, em linhas gerais, o “ter” influência diretamente no “ser” e no “estar”: “Sentiu vontade de matar toda aquela gente branca, que tinha telefone, carro, geladeira, comia boa comida, não morava em barraco sem água e sem privada [...]” (LINS, 2002, p. 23)

Quaisquer sinais de (in)diferença, de risco de não-satisfação, de não reconhecimento podem reconduzir à experiência do desamparo e aos becos sombrios da violência contra o outro que nos ameaça. Assim parecem ser os personagens do livro Cidade de Deus, ameaçados e sufocados pelo sofrimento e pela dor de não possuir as mínimas condições de existência que o “além-favela” possui. Cidade de Deus reitera o território dos excluídos9 e, nessas condições, o desejo pelo essencial (ter comida, luz, saneamento básico, dentre  outros) parece, contudo, desencadear, na obra de Lins, um desejo pelo que está além do supostamente necessário, ou ainda, de forma concisa, ser seduzido pelo poder que perpassa todas as relações e hierarquizações demarcadas dentro da favela: muitas personagens, por exemplo, almejam _____________________________________

9 Essas considerações se encontra no artigo intitulado: A estética da fome, de Ana Paula Sousa.

ser donos de bocas de fumo, ganhar muito dinheiro com a venda de drogas, estarem bem vestidos, serem respeitados e/ou temidos dentro da favela. O outro, então, passa a ser, não só o que está fora do universo de Cidade de Deus, “o estranho”, “o diferente”, como qualquer um que almeje o poder e o dinheiro existentes contraditoriamente nesse ambiente de pobreza e miséria que entendemos por favela. Muitos dos crimes como estupros, vingança amorosa, eliminação de bandidos parecem não ter ligação, os personagens do romance agem com autonomia, são sujeitos do mundo real e o autor da obra é quem rege esse coro de vozes, o que vem confirmar Bakhtin: “Portanto, por maiores que sejam a liberdade e independência das personagens, serão sempre relativas, e nunca se situam fora do plano do autor [...]” (BAKHTIN, 2010, p. X).

Cidade de Deus chega à década de 1980 como o lugar mais perigoso do Rio de Janeiro. Nesse contexto o “outro” passa a ser não só o que está fora do universo de Cidade de Deus, “o estranho”, “o diferente”, como qualquer um que também almeje o poder neste ambiente de pobreza e miséria em que a história decorre.

A possibilidade de criar projetos de vida, o direito de pertencer a um grupo, de ter condições dignas de sobrevivência, de ter realização no trabalho ou poder fazer do trabalho um meio de ganhar dinheiro e realizar outros sonhos são situações tidas como “utópicas” ou, até mesmo, “fora da realidade” de quem nasceu e cresceu dentro da favela.

Lins denuncia os problemas sociais coevos nesse espaço urbano e acentua a evolução dos crimes banais à guerra pelo poder do narcotráfico, em outras palavras a disputa territorial pelas “bocas”.  Desde a infância, a maior parte das crianças sente fascínio pelas armas, pois são através desses objetos que nascem o respeito e temor exercido dentro da favela e que consequentemente  as  tornarão pessoas temidas nos conjuntos. É no ritmo frenético das gírias e das orações coordenadas que decorre a terceira fase de Cidade de Deus, marcada pela guerra do narcotráfico e comandada pelo traficante Zé Miúdo.

É notória a necessidade que Paulo Lins encontra para traçar a microfísica do poder10, a qual se coloca de alguma forma entre o corpo e os discursos, as instituições e o aparelho do Estado.  Foucault, ao tratar da genealogia e da história dos acontecimentos e suas variações, cita Nietzsche, o qual conceitua que o bom não é contrapeso das forças, entre o mais forte e o mais fraco, mas sim a cena desse enfrentamento, que  representa  a visível  relação de dominadores e dominados, nascendo à divergência de valores e criando a ideia de liberdade.

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10 Em referência a obra de FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. organização e tradução Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011.

Vale lembrar que é na segunda fase que há experiências com armas de fogo e entorpecentes, os quais culminarão com a eclosão inevitável das disputas por territórios entre os bandidos. É nesse contexto que incide a guerra armada. Fica evidente nessa faz e a transgressão da ordem, pois o envolvimento direto com o tráfico de drogas dá-se através da polícia militar, que por sinal também se encontra envolvida no tráfico internacional de armas. A culminância dessa guerra vincula toda a terceira fase. A partir do momento em que Miúdo confidencia a Pardalzinho sobre o modo fácil de ganhar dinheiro: “Tá todo dia no jornal, só cego que não vê! Quem tá ganhando dinheiro é dono de bordel, cantor de rock e traficante, meu cumpádi!” (LINS, 2002, p. 101).

Dessa maneira os protagonistas da guerra revelam o enfraquecimento dos aparelhos de captura do Estado ante a formação de outro tipo de ordem local: a criminalidade. É o que vem afirmar Peixoto:

 

A nova rede de lugares estratégicos é um terreno para a polícia. A perda de poder do Estado produz novas formas de poder e política local, fora dos sistemas políticos formais. A desnacionalização do espaço urbano e a formação de novas reivindicações por novos atores colocam a questão: de quem é a cidade? (PEIXOTO, 2002, p. 26)

 

Desse modo Zé Miúdo organiza “sua” Cidade de Deus. O traficante domina esses espaços e os traça definindo seu território: organiza o tráfico através da repressão, presenteia os trabalhadores e crianças, promove festas, impede assaltos dentro do seu território, delimitando assim fronteiras dentro do conjunto. O desenrolar das disputas gera novas demarcações fronteiriças e o traficante-chefe determina as leis que vigerão esses espaços autônomos, embora localizados na Cidade de Deus.

Entretanto, a tentativa de centralizar o poder sempre caminha para uma nova descentralização e disputas pelos espaços fronteiriços. Novas associações ao tráfico e organização do crime, a exemplo as variadas facções criminosas dentro dos presídios. Na obra há a descrição do funcionamento do Comando Vermelho. A passagem a seguir ilustra as origens dessa facção:

 

Lá no presídio da ilha Grande estava tudo no esquema. Os sangras, os que matam e o angra, o que vai à delegacia de Angra dos Reis assinar a autoria dos crimes, já tinham sido selecionados e avisados que estavam a postos. [...] O plano fora bolado em vários e rápidos momentos pelos mentores da facção que ali se iniciava, tendo como palavra de ordem: “Paz, justiça e liberdade”. (LINS, 1997, p. 272)

 

Nesse contexto de crueldade o belo e o poético perdem espaço para política do lucro através das agressões. O lirismo se contrapõe ao grotesco num clima de inversão e a morte interrompe a vida dos bandidos e policiais. A propósito, tanto Inferninho, Pardalzinho, Zé Bonito e Zé Miúdo tiveram em suas mortes um tom leve, poético e triste; em contrapartida há a morte do policial Cabeça de Nós Todo que teve o corpo ensanguentado, destroçado e arrastado numa carroça por todo o conjunto, recebendo vaias. Aqui então comparamos o lirismo e o grotesco na morte dos personagens Inferninho e Cabeça de Nós Todo:

 

[...] Mas pode realmente haver paz plena para quem o viver fora sempre remexer-se no poço da miséria? Buscara algo que estava tão perto, tão perto e tão bom, mas o medo do orvalho repentinamente virar tempestade o fizera assim: cego para a bonança, que agora vinha definitiva. Talvez a paz estivesse no voo dos passarinhos, na observação da sutileza dos girassóis vergando-se nos jardins, nos piões rodando no chão, no braço do rio sempre saindo e sempre voltando, no frio ameno do outono e no vento em forma de brisa. No entanto, tudo sempre poderia se agitar de um modo indefinido, concorrer contra sua pessoa e cair na mira de seu revólver. Mas pode alguém enxergar o belo com olhos obtusos pela falta de quase tudo de que o humano carece? Talvez nunca tenha buscado nada, nem nunca pensara em buscar, tinha só de viver aquela vida que viveu sem nenhum motivo que o levasse a uma atitude parnasiana naquele universo escrito por linhas tão malditas. Deitou-se bem devagar, sem sentir os movimentos que fazia, tinha uma prolixa certeza de que não sentiria dor das balas, era uma fotografia já amarelada pelo tempo com aquele sorriso inabalável, aquela esperança de a morte ser realmente um descanso para quem se viu obrigado a fazer da paz das coisas um sistemático anúncio da guerra. [grifo nosso] (LINS, 2002, p.171)

 

O assassino se aproximou lentamente para o tiro de misericórdia. Em seguida, ordenou a um carroceiro que lhe entregasse a carroça. O corpo de Cabeça de Nós Todo foi jogado no transporte sem delicadeza. O matador deu um tiro para espantar o cavalo, que saiu em disparada pelas ruas do conjunto, depois trotava deixando rastro de sangue pelas retas da tarde que se deflagrara. Os moradores seguiam a carroça, amontoavam-se para ver o cadáver. O corpo de Cabeça de Nós Todos era uma bica aberta para sempre. O cavalo volta e meia parava, porém sempre havia um para açoitá-lo, dando continuidade ao espetáculo. O cortejo pegou a rua do meio. Alguns bandidos atiraram no defunto, o sangue jorrou forte, fazendo cair mais rápido e tornando mais rubro o crepúsculo de outubro. A mãe de um maconheiro assassinado por Cabeça de Nós Todos aproveitou para cuspir em seu corpo. Foi ovacionada. A carroça entrou na rua do braço direito do rio. A multidão cresceu. Alguns achavam que tinha perdido um bom policial. Ferroada interceptou o cortejo, deu uma geral procurando armas. Conseguiu apenas dez cruzeiros. A carroça seguiu. Dobrou a esquina. Chegou à Quadra Treze. A festa tomou nova proporção. Atiraram pedras, despejaram latas de lixo, deram pauladas. A tarde sem vento.

O cortejo seguiu até a birosca do Chupeta, onde a patrulhinha chegou com dois policiais, dando fim ao espetáculo. [grifo nosso] (LINS, 2002, p. 146-147)

 

Nos dois trechos podemos atentar para inversão de valores, pois o que ganha visibilidade na obra de Lins não são os trabalhadores ou ainda os policiais que não se corromperam nessa organização marginal, mas os que vivem na criminalidade ou em torno dessa. A morte dos bandidos, malandros e traficantes é repleta de lirismo e tristeza. Outro fator relevante nessa comparação são os elementos da natureza tal como o vento, elemento que torna proeminente a descrição da morte. É a metáfora do movimento de levar e trazer notícias, e de apagar toda tristeza e guerra gerada entre e pelos jovens bandidos. Já a morte do policial traz a ausência do vento, contrariando o efeito anterior, o sentimento que se atém somente ao ódio dos moradores do conjunto.

 

 

As Considerações Finais

           

Fica evidente, portanto, que a posição fronteiriça em relação ao espaço narrativo, a favela, evidencia um constante choque com os centros urbanos bem demarcados. Todavia, há ainda a disputa por territórios dentro do conjunto e a defrontação entre norma padrão da língua e oralidade. Diante das questões levantadas aqui, esse estudo pretendeu sinalizar de que forma Cidade de Deus faz uma releitura crítica das representações do passado e sua atualização no presente das grandes cidades brasileiras – entretanto, nos referimos não só a obras anteriores como Memórias de um sargento de milícias, Fogo morto, Os sertões, mas a fatos históricos passados que tiveram como consequência o conjunto habitacional Cidade de Deus, com toda a problematização aqui apontada.

À proporção que o corpo e o espaço são alvos de violência e controle, o corpo e o espaço na obra revelam as tentativas de controle do Estado para uma situação irreversível, referimos-nos à criminalidade e o narcotráfico - já que as categorias pertencentes à ordem como a polícia participam desse processo. Colabora não para o cumprimento das leis no início do romance, em contrapartida no terceiro e último capítulo, a polícia já está corrompida e participa do tráfico internacional de armas.

Outro fator relevante é a semelhança no “agir” do Estado com o traficante-chefe que domina e traça seu território: organiza o tráfico através da repressão, presenteia os trabalhadores e crianças, promove festas, impede assaltos e determina as leis que vigerão nesses “espaços autônomos”, em outras palavras, a favela. É nesse contexto que o sistema de controle e exclusão eclode sem precedentes fazendo com que os mecanismos de mediação social fraturem-se, já que a fala encontra-se em declínio, pois “massacrada no estômago com arroz e feijão a quase-palavra é defecada ao invés de falada. Falha a fala. Fala a bala” [destaque] (LINS, 2002, p. 21).  Como a tentativa de negociar os espaços da exclusão e da “Cidade Maravilhosa” seja nula, a mensagem a ser extraída dessa situação é que, quando as mediações falham, o meio de expressão que resta é a violência.

 

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