Escritos sobre Educação (Nietzsche) - Notas e inflexões

Escritos sobre Educação (Nietzsche) - Notas e inflexões

Escritos sobre Educação (Nietzsche) - Notas e inflexões

Giuliano de Méroe

 

Este estudo pretende discorrer sobre o pensamento de Nietzsche a respeito do erudito e da cultura, descerrando lados polêmicos do filósofo, que se opunha tanto à cultura moderna, que para ele era uma pseudocultura, como também à erudição proveniente desta, que considerava mesquinha. Nietzsche, em um gesto ousado, diz que a erudição não passa de um peso a mais nos ombros, que atrapalha o pensamento quando está comprometida com valores tão somente utilitários, históricos e jornalísticos. Quando subserviente ao Estado e à economia política, a cultura impõe esses valores para manutenção daqueles, e dirige o homem culto a um propósito totalmente alheio e estranho à ‘autêntica cultura’. Nietzsche acredita na Filosofia, não certamente naquela destilada das Universidades, que reitera os valores do Estado, mas naquela capaz provocar, subverter valores dominantes e de preparar o homem para a vida, para um ideal moral mais alto e aspirações mais nobres. Utilizaremos como apoio a este ensaio, a obra Gaia Ciência, e a coletânea dos textos sobre a Educação reunidos pelos organizadores Giorgio Colli & Mazino Montinari, das conferências proferidas em 1872, na Basileia.

As severas críticas de Nietzsche se referem sobre o futuro da educação, da cultura e também da filosofia, é devido a sua antipatia com certa tônica de ideais, de progresso, de homem ‘melhor’, e, sobretudo da figura do intelectual de seu tempo. O empobrecimento da filosofia o inquietava tiranicamente, pois percebia na figura dos educadores um total alheamento em relação a um tipo de filosofia que eleva o pensamento do homem a aspirações mais altas, numa esfera que não é compatível com questões básicas de necessidade, de sobrevivência, como também de identidade.

Nietzsche, ele mesmo um erudito, conheceu e esteve próximo de muitos outros eruditos, professores, estudantes, amigos, familiares; teve faro extremamente assaz ao diagnosticar a erudição como um fardo a liberdade do pensador, ao se servir de artefatos amesquinhados de considerações meramente pragmáticas.

O jovem Nietzsche, professor de Filologia Clássica da Universidade de Basileia, pode perceber esses efeitos nocivos da erudição, no ambiente intelectual da qual fazia parte: O próprio conceito de homem culto, devotado à erudição, estava totalmente desatrelado do que ele chama de “cultura clássica”[1].

Como professor, Nietzsche forjava em seus alunos o espírito da antiguidade clássica, bem como dos grandes pensadores do passado[2], e a importância que davam ao pensamento filosófico. A grande importância com que se dedicava à cultura era destinada ao ensino dos jovens como ponte necessária para sua posição de formadores do pensamento, portanto totalmente contrária à modernização pedagógica, que tem por objetivo a especialização à formação profissionalizante.

Ao investigar os estabelecimentos de ensino, sua primeira constatação, é que a cultura não pode ser separada da natureza, questão que já colocava um obstáculo às condições modernas dos ginásios ou das universidades, que não preparavam o educador a qualquer aproximação, conhecimento e contemplação da natureza, ao invés disso, já o relacionavam como um regulador de questões burocráticas e rotineiras, como a preocupação com quadro de horários das aulas, ao alinhamento das disciplinas, com as exigências do mercado e da economia política.

Os princípios que condenava na educação pedagógica, por condensarem uma atmosfera pesada e contrária à elevação da cultura, eram apoiados em duas posturas. A primeira, certamente submissa aos interesses da economia política, defendia a extensão e ampliação da cultura, acompanhando assim um aumento excessivo de estabelecimentos e um desmensurado número de educadores destituídos do espírito da ‘autêntica cultura’. Essa corrente, como observa Nietzsche é testemunho da fé dos homens modernos, voltados para a busca da felicidade, aí identificada como uma mera utilidade; assim formava uma inteligência a serviço do Estado, lucro e propriedade[3].

A outra corrente defendia a redução da cultura como uma função a serviço e dirigida pelo Estado, ou seja, num viés radicalmente contrário ao espírito dos grandes pensadores clássicos.

No primeiro caso, a universalização da cultura, acompanhada da intervenção do Estado na educação, com a emergência das grandes massas e das questões sociais, culminava no que ele chama de “barbárie cultivada”.

No caso da redução da cultura, o jovem é empurrado a uma agoniante formação compartimentada, um especialista que conhece bem somente sua área e militante da ordem prática e utilitária ignora assim qualquer sentido ao estudo da Filosofia. Principal argumento segundo o qual, a cultura não pode se desenvolver quando é orientada para a formação profissional, somente servindo ao propósito de um cargo, uma carreira ou função.

A decadência da cultura já era percebida por Nietzsche pela maneira com a qual o rigor para com a língua materna, começou a ser deixado de lado, e ensinado de uma forma superficial, grosseira e jornalística.[4]

O espírito da época incutia aos jovens, de maneira bem prematura, a ideia de uma autonomia, de liberdade acadêmica, quando ainda não estavam sequer preparados para emitir uma única posição séria a respeito de qualquer assunto.

Lastreadas pelo princípio de autonomia e liberdade acadêmica, as universidades, portanto transmitiam uma educação meramente conformista, integradora e padronizada, apta somente para os instantes incessantes da modernidade.

Os homens não são iguais, conforme repetido em várias sessões de seu livro Gaia Ciência, existe uma hierarquia de homens, de moral para a moral, não é uma hierarquia empresarial, mas uma hierarquia do espírito. Nietzsche da o exemplo do homem de Rosseau, de Goethe e Schopenhauer.

A tão conhecida declaração na época da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade – pertence a moral rousseauniana, que congrega a maioria dos homens. Já o homem contemplativo, apreciador, romântico é o de Goethe, um grupo de homens bem mais restrito que o primeiro, e o terceiro é o homem solitário, das cavernas de Schopenhauer, onde estão pouquíssimos homens, entre os quais podem ser os promotores da cultura autêntica e formadores do pensamento a ideais mais sublimes.

No livro V do Gaia Ciência, Nietzsche escreve sobre os problemas concernentes a teoria do conhecimento, do pensamento decadente dos eruditos, sobretudo, porque vem de uma valorização excessiva da “ideia”, da estreiteza dos quartos fechados, da profundidade de suas fantasias, em detrimento dos sentidos, do ar fresco da natureza e das superfícies.

Na sessão 372 do livro V do Gaia Ciência Por que não somos idealistas, há um ataque, uma denúncia contra um tipo de imagem de filósofos, característicos ao platonismo e pré-socratismo.

(...) “Eles, por outro lado, achavam que os sentidos os atraíam para fora do seu mundo, do frio reino das “ideias”, rumo a uma perigosa ilha do Sul: na qual, temiam, suas virtudes filosóficas se derreteriam como neve ao sol”.[5]

(....) “trata-se de uma velha superstição filosófica, a de que toda música é música de sereias”.[6]

 

(...) Esses velhos filósofos não tinham coração: filosofar sempre foi uma espécie de vampirismo. Em tais figuras, mesmo em Spinoza, não sentem vocês algo profundamente inquietante e enigmático? Não veem o espetáculo que aí se desenrola, o constante empalidecimento – a dessensualização interpretada de forma cada vez mais idealista?[7]

 

Em outra sessão, Nietzsche se serve do exemplo do Andarilho que quer saber o quanto são altas as torres de sua cidade, e por isso precisa abandoná-la; bem como faz o andarilho, é preciso escalar, subir, voar, para além de toda medida e juízo de valor, a fim de avaliar melhor a moralidade de sua região e de seu tempo. Ao invés de se debater sobre os juízos de valor, a questão principal é o quanto leves ou pesados nós somos. Questionamos-nos: Ao seguir a risca uma determinada tabela de valores, me torno mais pesado? A erudição a qual devoto meu tempo, meus esforços, são um fardo para o pensamento?

Os escritos da sessão 380 “O andarilho” fala, já diz sobre uma nova imagem de filósofos, “é preciso ser muito leve”, se livrar de muita coisa que nos torna pesados, velhas superstições, máximas, sentenças, que se tornaram estanques, puramente intelectuais, como por exemplo, uma fórmula de Hegel:” A contradição de todas as coisas move o mundo”; não mais fórmulas deste tipo; Nietzsche já tem a ambição de criar anedotas ou aforismo que são o pensamento enquanto pensamento e vida moventes, daí ele dizer que pretende escrever frases que dizem o que muitos livros não conseguem dizer.

Nietzsche vai mais longe quando diz que ao tornar leve a vontade de conhecimento para criar olhos para si que abarquem milênios, avistar as forças mais altas e aspirações mais nobres de cada época.

Apesar de colocar o nome de Heráclito de lado, guardando a este antigo filósofo mais reverência do que a maioria, Nietzsche não segue seu estilo, em vez de descer ao longo das profundidades, se torna atento a verdades mais tímidas e fugazes, que só podem ser apanhadas de supresa... que escapam as cavernas pré-socráticas ou as alturas platônicas.

Há diferentes nuances da crítica de Nietzsche, uma mais geral sobre a cultura, e outra sobre o erudito que a investe. Neste ensaio, não se pretende esmiuçar cada aspecto da crítica, o que exigiria que se criassem diversos tópicos e desenvolver cada ideia separadamente. O que pretendemos, porém, é apontar o que é essencial no movimento do pensamento nietzschiano sobre seu ceticismo em relação a ‘cultura moderna’ e o erudito.

Ele sustenta que o Estado é quem deveria servir e acompanhar a cultura como um aliado, pois esta não deve estar impregnada ou embebida de nenhum princípio de utilidade, nem orientada para o lucro.  A cultura não pode estar a serviço do Estado, da sociedade, do mercado, da indústria e Igreja, pois conforme assume compromissos servis com aqueles, fica despojada de seu valor moral, no mais alto grau.

A vontade de conhecimento, que em tese é um impulso natural, quando desviada para interesses egoístas como, por exemplo, o do negociante (no aspecto utilitário) – que acredita que cultura deve preparar para o lucro, e quanto maior, mais felicidade terão os homens; o egoísmo estadista (aspecto conformista), que tem por meta a instrução especializada para os estudantes, em uma adequação puramente normativa a fim de absorver seus talentos e se manter; e há também o egoísmo científico, cuja pressa dos eruditos pela ‘verdade provada’, os conduz a uma erudição cada vez mais microscópica e um desprezo pela filosofia.

Segundo Nietzsche todos esses compromissos assumidos, seja do negociante, os funcionários do Estado e dos homens da ciência, tem objetivos totalmente contrários e estranhos à autêntica cultura; a elevação da cultura só é possível na medida de uma transvalorização, uma revisão, ou melhor, reversão de muitas noções das arraigadas que promoveram a cultura moderna. Haveria de ser necessária uma crise, um caos, para desorganizar todo esse fluxo de valores e desejos que serve de moinho a cultura moderna e ao erudito desta.

Para superar estas condições adversas à elevação da cultura, Nietzsche acredita na filosofia, como uma força cáustica, perigosa, que subverta sentimentos e valores dominantes. Apesar de suas ferozes investidas contra muitos filósofos, ele defende a reflexão filosófica na educação. Notamos que entre os nomes que se refere negativamente, como Spencer, Rousseau, Mill, Hegel, Kant e outros, é porque neles se sente se percebe, uma repressão, uma violência, um apego a problemas puramente intelectuais e a elegância pomposa de palavras, que reiteram os valores do Estado (como Hegel), os valores teológicos (Kant) ou valores de propriedade (Spencer) e valores de uma moralidade ‘baixa’ (Rousseau).

Em contrapartida, os nomes que põe em reverência, como Goethe, Schopenhauer, Sthandel, Dostoiévski, Schiller, é porque vê nesses homens um pensamento mais elevado, que não solapa as forças reais da natureza ou do pensamento em nome de uma moral. É este calibre de filosofia que Nietzsche acredita e julga necessário ser cultivado para acesso a ideais superiores. Estes homens ao máximo se preservaram contra as tendências apressadas de sua época, mantiveram a muito custo sua liberdade de pensamento em relação ao Estado, Igreja ou Comércio, e por isso neles, tanto a filosofia uma como disciplina ou modo de vida, como a literatura ou arte, se respira algo de renovado, liberto de clichês.

Na literatura, como por exemplo, em Dostoiévski, se percebe, numa forma romanceada, uma luta contra a mediocridade, a moral tabelada, e ao eruditismo meramente histórico ou jornalístico e, conveniente a moral (como em seu rival Tolstói).

Nietzsche certamente não é contrário à erudição, mas sua atenção incide sobre isto: Quais as forças e valores estão investidos nela? É capaz de produzir movimentos, e expandir o pensamento? Ou estará meramente inventariando valores estabelecidos? Estaria a erudição encerrando, mumificando novas potências para o pensamento, ao invés de liberá-las?

Algumas obras como Verdade e Mentira extra-morais, são muito provocativas a este ponto. Seu livro Aurora, volta-se essencialmente para discussão da moralidade, seus escritos ‘racham’ muitos clichês, que permaneceram séculos permeando a Teologia, Filosofia, e muitos ensinamentos humanistas.

Recomendamos muita cautela e vagar aos leitores, com as obras nietzschianas. Seu pensamento dá saltos! Não se pode usá-lo, se apropriando de uma de suas frases, para servir de moinho a qualquer rompante de uma vaidade ofendida ou exaltada.

 

 

Bibliografia:

 

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

 

_____.Escritos sobre Educação. Tradução de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2004

 



[1]  Também denominada por Nietzsche como cultura aristocrática, na forma da Antiguidade Grega, em que os homens desencantavam a natureza, os estudantes eram guiados por homens excepcionais, em estrita obediência, uma severidade necessária a fim de criarem hábitos saudáveis; priorizava também o estudo das línguas clássicas, grego e latim e o exercício do pensamento na escrita.

[2]  A exceção dos gregos, Nietzsche apreciava bastante Schiller, Goethe, Lessing, além daquele que se considerou discípulo Schopenhauer.

[3] Nietzsche, Friedrich Wilheim – Escritos sobre educação; Tradução, apresentação e notas de Noéli Correia de Melo Sobrinho, 7 ed – Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Ed. Loyola, 2011, pag.14.

 

[4] Ibdem, pg.15

[5] Nietzsche, Frederich Wilhelm. A Gaia Ciência; tradução Paulo César de Souza. – 1º ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Pag.248

 

[6] Ibid. Pag.248

 

[7] Ibid. Pag.249