Ecos do Absolutismo Ibérico VII - Execução contra o Estado

Ecos do Absolutismo Ibérico VII - Execução contra o Estado

Ecos do Absolutismo Ibérico VII - Execução contra o Estado

 

Doutor Mário Villas Boas

 

No processo civil, quase sempre o réu, quando condenado, tem que pagar algo ao autor. Quando o réu condenado o faz espontaneamente, o processo termina sem a necessidade de uma execução. Caso contrário, é necessária uma fase suplementar no processo civil a fim de que o autor possa efetivamente haver a importância a que o réu foi condenado a pagar-lhe. Sendo o réu solvente, basta apreender=lhe numerário quanto baste para pagar o devido. Não havendo numerário suficiente, o juiz deve apreender-lhe bens quanto bastem para adimplir a dívida e leiloá-los para que o montante arrecadado nos leilões seja usado para este fim.

Quando o devedor é o Estado, ocorre um conflito de interesses. Apreender contas do próprio Estado para usar o dinheiro para adimplir o devido pode inviabilizar pagamentos previamente agendados e, com isso, inviabilizar o funcionamento do próprio Estado Penhorar bens do próprio Estado para leiloá-los e, com isso, arrecadar o necessário pode gerar problemas ainda mais sérios para o funcionamento do mesmo. Por este motivo, a execução contra o Estado segue um rito diferente.

Em que pese o fato de que a execução contra o Estado tenha, necessariamente, que seguir um rito diferente do da execução contra um ente de direito privado, o rito instituído pela legislação brasileira foi, num congresso de direito comparado, considerado o pior do mundo. Para começar, é necessário que o particular dê início à execução. Ou seja, sequer entra em cogitação que o Estado pague espontaneamente.

Iniciada a execução, é apurado o quantum a ser pago. Esta etapa é sempre necessária por causa do imenso lapso de tempo que invariavelmente decorre entre o fato que deu origem ao débito e sua apuração. Esse imenso lapso decorre não apenas do tempo absurdamente elevado necessário para o trâmite do processo de conhecimento, mas também do tempo de espera. É que, iniciada a execução, o credor entra na chamada “fila do precatório”, à espera de sua vez de receber. Em tese, este procedimento é correto. Contudo, a longa espera nessa fila decorre da irresponsabilidade acumulada de diversas administrações inadimplentes e a imensa fila de lesados por essa irresponsabilidade administrativa.

Mas o tormento do credor ainda não acabou. Apurado o montante a ser pago, incluindo-se juros e correção monetária, o crédito é inserido nas despesas a serem pagas no ano seguinte. A partir de então, param de correr novas atualizações. Mas este ainda não é o último tormento. Se o administrador, apesar da previsão orçamentária, não efetuar o pagamento, não há instrumentos jurídicos para que o credor o obrigue a fazê-lo.

Mas todos esses obstáculos não seriam um problema grave se não houvesse o desastroso hábito de todas as esferas de administração pública de abusar do mau hábito de não pagar em dia seus contratos. Com isso forma-se uma imensa fila de credores incrédulos na possibilidade de algum dia haverem o montante devido pela via que deveria ser a garantia da satisfação do crédito: a judicial.

Neste momento, cabe um parêntesis para falar de um assunto diverso, porém fortemente relacionado a este: os diversos sistemas jurídicos existentes no mundo. Em Direito, identificamos 4 grandes escolas de sistemas jurídicos. Existem outras menores, mas essas 4 são consideradas como os grandes modelos que englobam quase todos os sistemas jurídicos existentes no planeta. São eles: o Romano, o Inglês, o Soviético e o Muçulmano.

O Brasil usa o sistema Romano. O sistema Inglês difere do Romano essencialmente em aspectos processuais, principalmente quando se trata de processo penal. No sistema Inglês, o júri é muito utilizado num número muito maior de situações do que no sistema romano. Essencialmente, qualquer processo penal vai a júri. Em muitos casos, até mesmo o processo civil é decidido por um júri. O funcionamento do júri no sistema Inglês é também diferente do funcionamento no sistema Romano.

O sistema Muçulmano é fortemente influenciado por leis de caráter religioso. O Al Coorão é fonte obrigatória de direito nesse sistema jurídico. Caracteriza também esse sistema jurídico a possibilidade de solução do processo penal por meio de negociação entre o acusado ou sua família com a vítima ou sua família, um instituto que, no direito Romano e no Inglês somente se aplica nos crimes de ação privada.

Por fim, há o agonizante sistema Soviético. Ele é essencialmente idêntico ao sistema Romano a menos de uma única diferença: Não existe, neste sistema, a possibilidade de se mover qualquer tipo de processo contra o Estado.

No Brasil, como foi dito, adotamos o sistema Romano. Existe a possibilidade de se mover ações contra o Estado. Mas as dificuldades são tantas e as chances de sucesso efetivo tão remotas – receber o montante devido 20 o 30 anos após pode ser tão ineficaz quanto nunca recebê-lo, em muitos casos – que as pessoas são literalmente coagidas a não fazer isso.  Coagidas não tanto por regras ineficientes, mas principalmente pelo abuso dos sucessivos governantes em eito do hábito de inadimplir contratos.

Com este sistema de execução contra o Estado, chegamos a uma situação prática de praticamente ser impossível processar o Estado. Com isso, nosso sistema jurídico fica indistinguível do sistema Soviético, como o explanado acima.

Com este sistema perverso, o governo passa, na prática, a ter a prerrogativa de escolher que empresas podem ou não contratar com o governo. Somente as que podem serão pagas. As demais não terão como exigir pagamento com este sistema intencionalmente ineficiente. Cria-se, assim, uma associação perversa entre os donos do poder e os prestadores de serviço “autorizados” a contratar com o governo. O preço que o Estado paga por essa ineficiência é astronômico. Mas uma parte desta ineficiência acaba nos bolsos dos donos do poder que, assim, se perpetuam no poder e no comando desta máquina perversa.

Sem um modelo de execução contra o Estado que garanta o pagamento num tempo razoável, esse sistema se perpetuará e a associação dos prestadores “autorizados” com os donos do poder continuará drenando os cofres públicos em detrimento da eficiência dos serviços.