Ecos do Absolutismo Ibérico III - Crime de Falso Testemunho

Ecos do Absolutismo Ibérico III - Crime de Falso Testemunho

Ecos do Absolutismo Ibérico III - Crime de Falso Testemunho 

 

Doutor Mário Villas Boas

 

Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral:

Estamos tão habituados a conviver com esta teratologia jurídica que poucos brasileiros, mesmo entre operadores do Direito vêm nele uma afronta direta ao Estado Democrático de Direito. Criado na época do Estado Novo, num regime reconhecidamente autoritário, este dispositivo legal foi alterado em 2001, com a inclusão da referência ao inquérito policial, inexistente na versão original. A falta de tradição democrática no Brasil dificulta que os brasileiros vejam que a nova versão é inconcebivelmente mais antidemocrática do que a versão original.

Nada parecido com esta monstruosidade existe nos países verdadeiramente democráticos, onde os princípios do Estado Democrático de Direito são levados a sério. O leitor se perguntará então como esses países zelam pela veracidade dos testemunhos proferidos em juízo. A forma de fazê-lo é com outro instrumento legal, mais compatível com as liberdades democráticas.

No Brasil, como nos países onde a democracia é levada a sério, uma pessoa, antes de depor em juízo na qualidade de testemunha assume o compromisso de dizer a verdade. A forma de fazer isso varia um pouco de país para país, mas de um modo geral, imediatamente antes do início da inquirição da testemunha, a pessoa, de alguma forma, assume, perante o juiz o compromisso de dizer a verdade sobre os fatos que vai relatar. Nos países onde a democracia é levada a sério, esta solenidade tem um significado forte e é levada a sério. No Brasil não. Leia novamente a definição do tipo penal do artigo 342 do Código Penal, transcrito acima. Não há nele nenhuma menção ao compromisso ou juramento de dizer a verdade. Assim, na versão  distorcida que vige no Brasil, irrelevante, para a caracterização do crime, é o fato da testemunha ter ou não cumprido a solenidade na qual assumiu o compromisso de revelar a verdade. Veja-se a ementa do habeas corpus n° 69358/RS do Supremo Tribunal Federal:

EMENTA: "HABEAS-CORPUS". CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA: FALSO TESTEMUNHO, ART. 342 DO CÓDIGO PENAL.

1. Testemunha que não prestou compromisso em processo civil por ser prima da parte, mas que foi advertida de que suas declarações poderiam caracterizar ilicito penal.

2. A formalidade do compromisso não mais integra o tipo do crime de falso testemunho, diversamente do que ocorria no primeiro Código Penal da Republica, Decreto 847, de 11/10/1890. Quem não e obrigado pela lei a depor como testemunha, mas que se dispõe a fazê-lo e é advertido pelo Juiz, mesmo sem ter prestado compromisso pode ficar sujeito as penas do crime de falso testemunho. Precedente: HC n. 66.511-0, 1a Turma. "Habeas-corpus" conhecido, mas indeferido.

Como se vê, a própria Corte Suprema determina que é irrelevante, para a caracterização deste crime a prestação ou não do compromisso de dizer a verdade. Porque então existe esta formalidade?

O mais grave nesta teratologia jurídica é que o crime de falso testemunho se caracteriza também em processos administrativos e, pior, em inquéritos policiais, conforme modificação recente da lei, que a tornou ainda mais autoritária e anti-democrática do que a versão concebida durante o Estado Novo. Assim, se durante um inquérito policial, uma pessoa é chamada a depor, antes mesmo de saber se poderá ou não ser implicada no crime que está sob investigação tem o compromisso de dizer a verdade sob pena de cometer este crime. Se se negar a depor, também comete o crime. Instada a produzir depoimento que pode implicá-lo no crime deve responder, sob pena de enquadramento neste monstruosidade jurídica. O poder do delegado de polícia de constranger uma pessoa a depor na fase de inquérito mesmo contra sua vontade é de uma violência e autoritarismo tamanho que faltam-me palavras para expressar o tamanho de minha indignação. Nem Getúlio Vargas em seu pior momento teve a ousadia de impingir um arbítrio tão violento ao Brasil.

Nos países que levam a democracia a sério, uma pessoa antes de depor num processo – somente processo judicial – é instada a fazer um juramento solene de revelar a verdade. Se ficar comprovado que a pessoa mentiu esta pessoa é acusada não de falso testemunho, mas de perjúrio por ter jurado em vão quando formalizou seu compromisso de dizer a verdade. Qual é a diferença deste sistema para o que está em vigor no Brasil?

O primeiro e mais importante é que somente um juiz tem autoridade para constranger uma pessoa a prestar esse juramento. O segundo é que o crime de perjúrio se caracteriza também quando outros juramentos, também exigidos por lei, se revelam descumpridos. Quando, por exemplo, um funcionário público assume uma função de grande responsabilidade e presta juramento de observar o cumprimento da lei e da constituição no exercício do cargo, quando um soldado jura proteger a pátria ou quando uma pessoa se forma num curso de nível superior e promete usar seus conhecimentos em benefício da sociedade também comete este crime quando descumpre o juramento que fez.

Note que, pela lei brasileira, o perito e o tradutor também cometem este crime quando não revelam a verdade no exercício de suas funções. Nas democracias sérias, o tradutor presta juramento e o perito deve depor como testemunha para que seu laudo pericial possa ser contraditado pela parte contrária. Ao depor como testemunha, o perito faz o juramento que toda a testemunha tem que fazer. A falsidade da perícia, quando notada, transforma-se num crime somente quando o perito a sustenta em juízo, após ter feito o juramento.

Tudo indica que a resistência de nossas instituições em abolir esta monstruosidade está no medo que o outro viés do crime de perjúrio – o juramento em vão nos momentos de assumir cargos como de Presidente, Governador, Juiz ou Ministro de Estado – venham a enquadrar a multidão de homens públicos que jura em vão sem o menor pudor ou compromisso quando assume tais cargos. Aqui, em terras tupiniquins, parece não haver interesse em dar um caráter de compromisso sério, que possa ser cobrado depois, a qualquer juramento feito em qualquer ocasião.