Direitos Humanos: A impunidade e desigualdade na distribuição da Justiça

Direitos Humanos: A impunidade e desigualdade na distribuição da Justiça

Direitos Humanos: A impunidade e desigualdade na distribuição da Justiça

        

                                                                                                                                      Fabiana Juvêncio

      

No percurso da história, a emergência dos Direitos Humanos tem como referência a luta contra os soberanos absolutos. Portanto, caracterizados como liberdades individuais e focados nos direitos civis, que convergem para o sujeito de direito, e não mais a sujeição ao soberano, os Direitos Humanos, "nascem contra o superpoder do Estado - e, portanto, com o objetivo de limitar o poder do soberano". Esses são configurados como liberdade negativa, uma vez que sua garantia fica a depender da não intervenção do Estado na liberdade dos indivíduos (BOBBIO, 1992, 72).

Em consonância com a perspectiva histórica, os Direitos Humanos perpassam por uma demarcação temporal e espacial, e são frutos do protagonismo social. Porém, o conteúdo dos Direitos Humanos alcançado na atualidade foi construído durante séculos e foi resultante de lutas e conquistas de homens e mulheres. Isso ocorreu quando estes, em determinado contexto histórico, estiveram em luta contra a exploração, a exclusão e a injustiça social, tendo em vista a conquista da liberdade, da igualdade, da emancipação, da inclusão e da dignidade humana em condições reais para toda a coletividade (BOBBIO, 1992).

Uma revisão da literária nos  permitiu adentrar nos principais eixos articulam o a respeito da nova à lei em aspectos técnicos e abordagens sociológicas. Para tanto, além novas mudanças instiuidas na nova legislação no âmbito judicial aos casos de violência contra a mulher.

Para Scott a impunidade, desigualdade na distribuição da Justiça, acesso à Justiça não são temas relacionados exclusivamente à questão de gênero, embora nesta interface adquiram algumas especificidades que têm sido reiteradamente apontadas pelos estudos que assumem a perspectiva de gênero em suas análises, entre elas a manutenção da submissão da mulher na sociedade e sua redução a uma cidadania de segunda classe. Neste sentido, os estudos sobre violência de gênero muito podem se beneficiar de outras análises sobre a desigualdade da perspectiva de raça e de classe social. Esta se constitui numa boa maneira de se verificar como a transversalidade de gênero (SCOTT, 1988) opera como obstáculo para a consolidação da cidadania baseada na universalidade dos direitos humanos e na eqüidade de gênero.

Um dos pilares fundamentais para este estudo situa-se na sociologia do Direito de Max Weber. A atualidade da sociologia weberiana para as análises sobre Direito e Justiça nas sociedades contemporâneas tem sido reconhecida especialmente no que se refere ao seu conceito de monopólio da violência pelo Estado e a formação do Direito Moderno como esfera racional. (SOUZA, 2000; ADORNO, 2003).

Para Weber (1991,1982) o Direito nas sociedades modernas se caracteriza pela presença de um corpo de especialistas (juristas) formados pelas Escolas de Direitos e treinados dentro de uma racionalidade jurídico-formal. Para seu funcionamento, o Direito também precisa de um aparato que é composto por um corpo de funcionários especializado escolhidos por sua competência e conhecimento técnico  e de um conjunto de normas gerais impessoais que deverão ser aplicadas a casos concretos mediante lógica formal, abstrata e imparcial. Juntos, esses componentes formam a burocracia que segundo Weber seria a base do modo de dominação nas sociedades modernas capitalistas.

O Sistema de Justiça brasileiro é um sistema liberal baseado na igualdade de todos perante as leis, organizado numa estrutura burocrática, fragmentada, hierarquizada, encarregada de operacionalizar o conjunto de leis e regras normatizado no Direito Positivo, expressão do monopólio estatal da legalidade. (SOUZA SANTOS, 1985; WEBER, 1991).

O decorrer do estudo justifica-se com base na justiça e violência contra a mulher, os estudos fundamentam-se nas questões de gênero sem precisar o cenário jurídico. O enfoque nesse cenário consiste nas questões relativas a violência de gênero. Para tanto, a relação entre gênero e Justiça tem sido caracterizada com enfoque negativo. Todavia, pretende-se  neste trabalho constitui num espaço para mulheres em situações de violência.

Piovesan (2003) analisando as possibilidades de integração da perspectiva de gênero na doutrina jurídica brasileira, argumenta que esta ordem jurídica reúne num mesmo sistema normativo instrumentos jurídicos contemporâneos e innovadores (como a Constituição Federal e os Instrumentos Internacionais de proteção dos direitos humanos) e outros anacrônicos como o Código Civil de 1916 e o Código Penal de 1940.14 Esta convivência reveste-se de tensão entre valores. No que tange à condição da mulher, Piovesan afirma que enquanto a Constituição e os Instrumentos Internacionais consagram a igualdade entre homens e mulheres, o dever de promovera igualdade e proibir a discriminação, os Códigos Civil e Penal adotam uma “perspectiva androcêntrica, (segundo a qual a perspectiva masculina é central e o homem é o paradigma da humanidade) e discriminatória com relação à mulher”. (PIOVESAN, 2003: 155).

Ainda, Piovesan sugere que é necessário “atacar” o problema em duas frentes: de um lado mudando o ensino jurídico como forma de transformar o perfil conservador dos agentes jurídicos “que em sua maioria concebem o Direito como instrumento de conservação e contenção social e não como instrumento de transformação social” (p. 157). Além disso, é preciso investir esforços para “criar uma doutrina jurídica, sob a perspectiva de gênero, que seja capaz de visualizar a mulher e fazer visíveis as relações de poder entre os sexos”. (p. 158).

Para a violência de gênero, análises deste tipo aplicam-se aos casos de homicídio, ou aos crimes sexuais, mas não são apropriadas para os casos que envolvem lesões corporais e ameaças ocorridas nas relações conjugais, uma vez que nestes casos, o desejo da mulher (vítima) é determinante para que cheguem à Justiça, além de influenciar seu movimento no fluxo. Desta perspectiva, a metáfora da pirâmide é mais adequada para a análise proposta neste trabalho. Aplica-se a este caso a afirmação de Santos de que “(...) o tribunal de primeira instância chamado a resolver o litígio é, sociologicamente, quase sempre uma instância de recurso, isto é, acionado depois de terem falhado outros mecanismos informais utilizados numa primeira tentativa de resolução”.(SOUZA SANTOS,1996: 49).

Para entender o deslocamento das mulheres entre os dois espaços – público/privado, discurso jurídico formal/outros discursos de direitos – pode ser útil definir esse movimento a partir do conceito de ação social em Weber. Segundo a teoría weberiana a ação social tem origem na vontade racional dos agentes que agem a partir das necessidades concretas de sua vivência em sociedade e são a “única entidade que consegue conferir sentido às ações” (WEBER, 1982: 28).

Em a História da Sexualidade – volume I, Foucault formula cinco aspectos que definem poder: (1) o poder não é algo que se adquira, arrebate ou compartilhe; algo que se guarde ou deixe escapar; o poder se exerce e só existe como ato/ação; (2) as relações de poder não são exteriores a outros tipos de relação (econômicas, de conhecimento, sexuais), mas lhe são imanentes, desempenhando papel de reprodução dessas relações; (3) o poder não é algo que parte de um ponto central, exterior e emana de forma descendente sobre a sociedade. O poder é algo que se produz e reproduz nas relações entre as pessoas, cujas relações desenham campos de força, móveis e desiguais. É essa desigualdade que induz a “estados de poder”; (4) o poder é onipresente, está em todas as partes não porque engloba tudo, mas porque nasce de todos os lugares, se produz a cada instante, em toda a relação entre um ponto e outro; (5) onde há poder há resistência. Esses pontos de resistência móveis e transitórios, que introduzem na sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam novos reagrupamentos. (FOUCAULT, 2001: 89-92).

Foucault (2001) argumenta que parte da rejeição ao pensamento presente no feminismo deve-se a leituras particulares sobre sua obra, ou a determinados períodos de sua obra. Uma das críticas presentes entre as teóricas feministas é de que a microfísica do poder, como proposta por Foucault, permite entender como as relações se estruturam no cotidiano, mas não permite explicar as estruturas globais de dominação. “Esse tipo de crítica indica falta de familiaridade com o trabalho de Foucault sobre governabilidade (...) Foucault não nega que as práticas microfísicas de poder sejam tomadas de estratégias globais ou macro estratégias de dominação. Ele apenas recusou o privilégio de um centro de poder, o qual é visto permeando a vida cotidiana das pessoas.” (p. 43, 44).

Destaca-se o artigo de Marilena Chauí Participando do Debate sobre Violência Contra a Mulher (1984). A principal referência extraída deste trabalho é a definição de violência, segundo a qual as diferenças seriam convertidas em desigualdades, servindo desta forma à dominação, exploração e opressão dos homens em relação às mulheres. Segundo sua hipótese, “a subjetividade feminina seria constituída heteronomamente, ou seja, externamente às mulheres, através de um discurso masculino que é entendido não só como aquele que fala sobre as mulheres, mas como aquele cuja existência é possível graças ao silêncio delas” (CHAUÍ, 1984: 45).

Em relação a violência contra a mulher, Bárbara Soares (1999) refere-se ao fascínio que cifras e números exercem sobre aqueles que se dedicam a analisar o problema da violência contra a mulher. Seu exemplo é norte-americano, mas pode ser aplicado a qualquer sociedade. Soares relaciona uma série de números e porcentagens que são utilizados em panfletos e campanhas que visam estimular o combate à violência contra a mulher e alerta para o perigo em se destacar os números do contexto e da lógica em que foram produzidos, sejam pesquisas acadêmico-científicas, sejam instituições de segurança e justiça ou de outra natureza, revelando dados que são contraditórios, que muitas vezes sustentam ideologias, mas nem sempre refletem a realidade.

Saffioti (2002) reforça a idéia de que os estudos e estatísticas revelam apenas parte da violência contra a mulher, pois cada instituição ou tipo de pesquisa, polícia, sistema de saúde, pesquisa com a determinada população – revelará sempre apenas parte dos casos. “Existe uma maneira extremamente cara, tanto do ponto de vista financiero quanto daquele do tempo, de obter esses dados – passar a sociedade na peneira, ir de casa em casa perguntando quem ali sofreu violência e por parte de quem. Ainda assim, não saberíamos quantas mulheres realmente sofrem violência, porque muitas esconderiam o fato do pesquisador.” (p. 35).

Tratando das dificuldades para conceituar a violência doméstica, violencia familiar ou a violência contra a mulher e suas especificidades, Soares (1999) coloca que “(...) queimar uma mulher ou feri-la com uma arma, estuprar uma criança e forçá-la a práticas sexuais são atos facilmente incrimináveis, legal e moralmente, ao menos nas democracias modernas. Outros itens são, contudo, menos óbvios, como xingamentos e palavras que ferem e, sobretudo, o ato de privar um parente de suas necessidades básicas (...).” (Soares, 1999, 69). Ainda segundo esta autora, na sociedade norte-americana, essas outras formas de violencia estariam sendo classificadas como abusos e negligências. Se por um lado, a definição de violência relacionada a atos que provocam dor física é limitada, excluindo os abusos de ordem emocional, por outro lado, a inclusão da negligência, omissão, ameaça verbal e xingamentos como violência não é menos problemático pois, como ressaltou Soares “a intensidade das ameaças e o poder que as palavras tem de ferir uma pessoa dependem do contexto em que são proferidas e da dinâmica de cada relação”. (1999, 71).

Este tema do vínculo afetivo entre mulheres e agressores também reaparece nos debates a respeito da adequação da lei 9099/95 aos casos de violência contra a mulher, especialmente com relação à definição dos crimes como de “menor potencial ofensivo” (MASSULA, s/d; MELO e TELESe, 2002). Argumenta-se que o poder ofensivo de uma agressão entre marido e mulher tem uma profundidade que não pode ser captada pela esfera jurídica por ser subjetiva, ferir as emoções e sentimentos. Essas questões afetivas e morais não são passíveis de mensuração ou de serem convertidas em laudos. Sua concretude não é passível de objetivação e materialização. Daí a dificuldade de se estipular penas ou medidas punitivas que visem a reparação de danos à vítima.

Em uma perspectiva teórica, a origem da violência contra a mulher tem sido, de modo geral, explicada como conseqüência natural e universal das diferenças biológicas entre homens e mulheres (O’TOOLE & SCHIFMANN, 1997). Sob a ótica de gênero, essas diferenças biológicas passaram por um processo de apropriação pela sociedade, de modo que a prática da violência de homens contra mulheres tem origen na adequação ou inadequação aos comportamentos e valores inerentes aos papéis masculino e feminino vigentes em cada sociedade (CORRÊA, 1983). Desta forma, sempre que a mulher deixa de se comportar como seria esperado para seu papel (como esposa, como mãe, como amante, como dona-de-casa) a violência pode ocorrer.

As conclusões do Relatório Mundial sobre Violência e Saúde (KRUG, 2002) corrobora a existência dessa tensão na compreensão dos fatores que estão presentes na violência contra a mulher. Segundo o relatório, recentemente surgiram esforços em estabelecer quais são os fatores de risco de violência contra as mulheres. Foram analisados fatores individuais (histórico pessoal e personalidade), fatores de relacionamento (companheirismo) e fatores comunitários (econômicos e respostas coletivas ao problema). As primeiras conclusões indicam que o único fator que indica risco para as mulheres trata do histórico de violência na família, ou seja, os índices de abuso parecem ser muito maiores entre as mulheres cujos maridos foram vítimas ou testemunharam episódios de violência familiar quando crianças. Sobre o uso de álcool pelos agressores, embora sua freqüência seja elevada nos relatos de violencia contra a mulher, de acordo com o relatório, não foi possível ainda establecer sua magnitude como risco para as mulheres, uma vez que não há consenso se a relação entre álcool e violência é causal. “Muitos pesquisadores acreditam que o álcool funciona como um fator situacional, aumentando a probabilidade de violência ao reduzir as inibições, anuviar o julgamento e coibir a capacidade das pessoas de interpretar os sinais. O excesso de bebidas também pode aumentar a violência de gênero ao estimular as brigas entre os casais. Outros argumentam que o vínculo entre a violência e o álcool depende da cultura e existe apenas em cenários onde a expectativa coletiva é de que a bebida causa ou justifica determinados comportamentos. Na África do Sul, por exemplo, os homens falam em usar o álcool de forma premeditada, para ganhar a coragem necessária para bater em suas parceiras, como acham que é socialmente esperado deles.” (KRUG, 2002: 99).

Entretano, em estudos brasileiros relizados sore a violência contra a mulher, também se encontra a referência à presença do álcool nas agressões. Azevedo (1985) já propunha que o álcool fosse considerado como fator que precipitava a violência, e não como determinante para sua ocorrência. Outro estudo que abordou a questão da presença do álcool e das drogas nas ocorrências de violência contra a mulher (SOARES et al., 1996) ressalta que além das relações de causalidade que são estabelecidas entre álcool e violência, é preciso pensar a respeito da expressão que isto tem na forma como as mulheres constroem seus relatos e elaboram a experiencia pela qual passaram ou vem passando. “Definir o agressor como alcoólatra ou embriagado envolve, sem dúvida, uma acusação. Mas a bebida funcionará como agravante em alguns casos e como atenuante em outros, dependendo dos rumos que tomará o “diálogo” disruptivo ou conciliatório que a vítima estabelece com o agressor e para o qual convoca a mediação da delegacia. Em qualquer um dos casos, contudo, a presença do álcool não fará mais do que acentuar ou minimizar o teor da violência. Nenhum delito se sobrepõe à violência já denunciada: beber não é ilícito.” (SOARES et al, 1996: 88, 89).

A postura feminina acerca da violência tem sido objeto grador de discussões que trata as relações violentas. Em modo geral, a presença de condicionantes econômicos ou afetivos, a maior parte dos trabalhos atribui a prática da violência como resultado do modelo patriarcal de relação entre homens e mulheres que ainda impera nas sociedades modernas. Embora alguns autores defendam que não se pode falar em relações patriarcais na atualidade tomando como pressuposto o conceito formulado no início do século passado (DELPHY, 1999, PATEMAN, 1989 e 1993; MESSERSCHIMIDT, 1997) a concepção de uma relação de dominação e submissão entre homens e mulheres continua sendo matriz de muitas análises a respeito da persistência da violência contra a mulher e a resistência das mulheres em lutarem pela condenação de práticas das quais são vítimas diretas.

Conforme D’Oliveira (2000) observou entre as mulheres que procuram os serviços de saúde, para serem ouvidas, elas desenvolvem estratégias que permitem “falar a linguagem das instituições” e desta forma serem ouvidas. Assim, nos serviços de saúde falam sobre sintomas e doenças e nas delegacias de polícia falam sobre crimes. Entretanto, nem sempre elas se vêem como vítimas de crimes e apenas esperam que alguém possa fazer algo para ajudá-las. Dito de outra forma, admitir que elas falam o “discurso da instituição” não significa reconhecer que elas de fato tenham incorporado esse discurso, no caso das delegacias, aquele que trata de crime, violência, ou o discurso militante sobre direitos humanos e cidadania.

Em suma: os discursos a respeito aos casos de violência de gênero e seu impacto no cotidiano na sociedade moderna perpassa varios ámbitos jurídicos instituciolizados corroborando com altos niveis de consequências na vida afetiva –emocional- econômica para diversos lares familiares em todo o mundo. O objetivo principal deste estudo foi colaborar de alguma maneira para contribuir na construção de conceitos teóricos na violência de gênero na defesa e proteção dos direitos das mulheres em prol da construção da cidadania.