Análise literária do romance Gente Pobre, de Fiódor M. Dostoiévski (1846)

Análise literária do romance Gente Pobre, de Fiódor M. Dostoiévski (1846)

 

Análise de Gente Pobre (1846) de Fiódor M. Dostoiévski

 

Giuliano de Méroe

 

O estudo dedica-se ao pensamento de Dostoievski, na esteira da interpretação de Nietzsche por Gilles Deleuze, em Mikhail Bakhtin, a partir da obra Problemas da Poética de Dostoiévski, em algumas obras de Nietzsche; na monografia de Deleuze sobre Nietzsche, publicada como Gilles Deleuze: Nietzsche e a Filosofia; nos romances de Dostoiévski, e no primeiro volume do biógrafo Joseph Frank, — Dostoiévski: As sementes da revolta, 1821 a 1849.

Apresentamos em primeiro momento um breve resumo do livro Gente Pobre:

Trata-se de uma relação amorosa, comunicada através de cartas, entre dois personagens – um funcionário público (conselheiro titular), Makar Diévúchkin, copista de meia-idade que trabalha um uma repartição pública de São Petersburgo, e uma menina adolescente, chamada Várvara Dobrossiélova.

O romance descreve-os como parentes, embora não esclareça qual é exatamente o grau de parentesco entre eles. Dievúchkin, numa das formas de dar vazão ao seu afeto pela menina, tenta protegê-la das intrigas de uma alcoviteira, que por mero interesse pecuniário pretendia vender a menina a um aristocrata. Makar faz tímidas investidas amorosas, porém, totalmente lúcido quanto à impossibilidade da moça lhe corresponder, em função da diferença de idade e fases de vida distintas. Várvara devota-lhe total sentimento de amizade e gratidão por seu amor.

Entre eles há uma mútua e grandiosa solicitude, ambos parecem querer superar o sentimento de impossibilidade amorosa e recuperam um pouco da autoestima e sentimento de poder. Dievúchkin passa por dificuldades financeiras por dedicar-se exclusivamente a Várvara, dando-lhe presentes, flores, doces entre outros mimos enquanto que vive em total situação de penúria, com roupas desgastadas e saúde comprometida.

Reaparece a certa altura um aristocrata sedutor que propõe casamento a Várvara, apenas por desejar um herdeiro e destituir um sobrinho de quem não gosta. Percebendo ser sua única chance de melhorar de vida, Dobrossiélova aceita o pedido e por cartas se despede definitivamente e no fim Diévuckin lamenta-se de sua dor.

Percebemos no final que o tom lastimoso de Makar é comovente e intenso, pois se mantinha lúcido o tempo todo e antevia como as coisas iriam terminar. Em seu discurso, nas frases com reticências, evasivas, notamos que ele se empenhava ao máximo, não por querer obter reconhecimento dela, algo em troca ou retorno. Ele se exercitava com isso; sua qualidade de prestativo era uma forma de expandir sua afirmação pelo poder da escrita, como um homem inspirado por intenso sentimento de afeto por uma mulher.

Ele é o oposto do aristocrata que, no final do romance, se casa com Várvara, apenas por interesse pessoal, para evitar que o sobrinho herdasse seus bens.

Quanto a Várvara, apesar de ela não querer se casar com Makar, notamos que ela não chega a rejeitar Diévuchkin em nenhum momento entre seus escritos. Suas falas são repletas de evasivas, até mesmo quando se despede ela diz: “Ah... mas eu vou te escrever sim, Senhor Makar Diévuchkin”.

Claro que a consciência da personagem é interpretada a partir de algumas chaves  nietzsche-deleuzianas, estudas neste curso.. 

A Primeira criação literária do escritor russo foi inspirada principalmente pelos seus antecessores também russos Nikolai Gogol e Aleksandr Púchkin e o escritor escocês Walter Scott.  Quanto ao gênero do romance, Dostoievski, recria-o na forma epistolar, inspirado em variados romances de Walter Scott.

Para retratar o ambiente social, ideológico busca-o a partir de Gógol, neste caso especialmente a novela O Capote, que retrata a vida de um funcionário público petersburguense. O preconceito social enfrentado pelo personagem Akaki Akakiévitch da novela recebe um tratamento satírico por parte de Gógol. Dostoiévski ao elaborar o herói de seu romance Makar Diévuchkin retira esses elementos estritamente cômicos e moralizantes externos à personagem e ausculta mais de perto, mais ao fundo, as vozes que se atravessam no mundo de Diévuchkin.

Gógol havia publicado O Capote completamente dentro do espírito da escola natural, cuja ênfase é procurar retratar factualmente o cotidiano das pessoas em seu contexto social. Dostoiévski, porém percebia que essa escola representava os fenômenos superficiais da sociedade, era insuficiente para se penetrar mais ao fundo nas linhas intensivas do pensamento em cada personagem.

Em uma carta ao irmão, ao se referir à reação da crítica ao estilo de Gente Pobre:

“Encontram em mim uma corrente original nova (Bielinski e os outros), que se constitui pelo fato de eu agir pela Análise, e não pela síntese, isto é, vou ao fundo desmontando em átomo busco o todo. Já Gógol pega diretamente o todo, e por isso não é tão profundo quanto eu”. [1]

Em Gente Pobre, é Várvara (a heroína do romance) que envia para Diévuchkin alguns livros, entre eles, ela recomenda ao seu correspondente que leia, especialmente a novela O Capote de Gógol[2], e o um Conto de Púchkin[3], O Chefe da Estação, que estava em um exemplar dos Contos de Biélkin.

Makar Diévuchkin ao longo de toda a obra demonstra muito apreço pela literatura, e uma vontade insaciável de criar seu próprio estilo literário para exprimir seus pensamentos, apesar de se denominar um homem inculto, bruto e sem bons gostos. Ele comenta numa carta a Várvara:

“Sim, é tudo muito real. [...] É a própria vida! Eu já vi isso; tem a ver comigo”.

 

“[...] É algo que edifica e fortalece o coração das pessoas, e há muito mais coisa, ainda escrita, sobre tudo isso num livro lá que eles têm. Muito bem escrito! A literatura é um quadro, ou seja, em certo sentido um quadro e um espelho; é a expressão da paixão, uma crítica tão fina, um ensinamento edificante e um documento [...]”.

O personagem dostoievskiano, reagiu de uma maneira muito diferente as duas leituras. Púchkin, em O chefe da Estação, delineia a figura de um pai desolado, sem poder para enfrentar seus direitos diante de um jovem nobre que seduz sua filha e foge com ela. Incapaz de reconquistar a filha, ele se afoga nas bebidas e morre por sua dor.

 

“(...) o que tenho a dizer é que nunca em minha vida me aconteceu de ler um livro tão bom (...)”.

 

“(...) acontece mesmo de a pessoa viver sem saber que ali, do lado dela, tem um livro no qual toda a sua vida está exposta como os dedos da mão (...)”.

 

“E, por fim, mais um motivo para ter gostado do seu livro: há obras que por mais que a gente leia e releia, às vezes, por mais que quebre a cabeça – são tão astuciosas que é como se não a entendêssemos”.

 

“E é como se a gente mesmo a tivesse escrito, para dar um exemplo, é exatamente como se a pessoa pegasse o próprio coração, seja lá ele como for, o virasse do avesso para outros verem, e aí descrevesse tudo em pormenores — é exatamente assim!”

 

Muito diferente a reação de Makar ao terminar a leitura de o Capote:

“Com que direito, pergunta ele indignado, debaixo do seu próprio nariz, sem nenhuma razão aparente, e sem sua permissão, alguém faz uma caricatura sua?”

“[...] Devia ter consciência disso tudo, minha filha ele também devia sabê-lo; já que se pôs a descrever, então deveria saber tudo. Não, nunca julguei que fosse capaz disso, minha filha; não mesmo, Várienka! Pois era justamente de você que não esperava uma coisa dessas”.

 

“Mas como teve coragem, minha querida, de me mandar um livro desses? Pois é um livro mal-intencionado, Várienka; isso é simplesmente inverossímil, porque não pode sequer ser possível que haja um funcionário assim. E, mais, depois de ler uma coisa dessas, é o caso de dar queixa, Varienka, e queixa formal”.

Em consulta ao principal biógrafo de Dostoievski, Joseph Frank, no primeiro entre os cinco volumes — Dostoievski: As sementes da revolta 1821 a 1849, observamos que ele soube captar uma chave do pensamento do escritor.

Joseph Frank, em seu estudo sobre Gente Pobre se impressiona muito a habilidade do autor russo, em seu romance epistolar, de revelar os pensamentos mais ocultos, as vozes mais abafadas de seus personagens; O que é liberado nas entrelinhas das cartas é muito mais potente do que as palavras, enquanto sinais gráficos são capazes de representar.

Dostoievski, como bem descrito por Frank põe a luz algumas vozes internas que são muito opacas, difíceis de serem apreendidas, e que são muitas vezes maculadas, devido ao apego a representação dos significados, por um estilo literário, como por exemplo, o estilo fisiológico, ou como era própria da literatura russa clássica de seus colegas escritores contemporâneos como Tolstói, Turguêniev, Gorki...

Ao longo de todo o livro, entre as trocas de cartas, a tensão permanente entre o dito e o não dito é o que dá acesso à consciência dos personagens. Diévuchkin está o tempo todo em uma luta muito intensa consigo mesmo. De um lado a luta se dá entre a paixão que sente por Várvara e ao mesmo tempo a consciência que tem da impossibilidade desse amor; de outro por querer preservar seu amor-próprio, seu senso de dignidade humana diante da opressão por sua condição precária.

Várvara por sua vez também enfrenta essa tensão, que para ela, se dá pela impossibilidade de corresponder às tímidas investidas amorosas de Diévuchkin, a aflição de vê-lo empobrecer, o desejo de respeitar seus sentimentos e ao mesmo tempo uma alegria espontânea de menina com os presentes que ele lhe oferece.

Como lembra Bakhtin, a linguagem de Dostoiévski é sempre dialógica. As vozes de seus personagens em geral, assim como de Makar e Várvara, em nenhum momento são relatos unívocos, ou expressões monológicas que exprimem o ponto de vista de um ou de outro personagem. Nas falas das personagens há uma sutileza de detalhes que em hipótese nenhuma reflete a visão unificadora do autor. Seus personagens falam por si mesmo, e seus discursos são carregados de referências abertas ou veladas a uma rede de possíveis réplicas antecipáveis. O que mais temem as personagens dostoievskianos são suas imagens refratadas pelo outro, e quando falam entre si ou estão em monólogos, fazem sempre numa atitude de mirada em torno.

Os personagens de Dostoiévski enfrentam de um modo velado a polêmica no pensamento interior com outro. Ao mesmo tempo em que Várvara dá um sentido à existência vazia de Makar, ele sabe da impossibilidade de ela lhe corresponder... entretanto ele se auto afirma e nessa intensificação e procura elevar-se cada vez mais, sendo-lhe indiferente se se trata de uma ilusão ou fantasia.

A característica de Makar Diévuchkin, em um contexto muito particular contém uma das chaves da filosofia de Nietzsche, acentuada por Gilles Deleuze, pois a questão do verossímil, do demonstrável, do lógico não se impõe a Diévuchkin nem a Várvara. Consciente de sua ilusão, ele vê se preenchido por algo que o impele para a vida. Seus presentes, suas cartas carinhosas a amada, são sinais de sua afirmação para a vida, imprimem o seu sim delicado. Sua mentira é do alto, pois se sente nobre em devotar seu amor pela garota e de nenhuma maneira a quer possuir, não quer o reconhecimento... ele cria por vontade de criar.

Bakhtin realça também que a palavra do outro está presente de modo invisível, o que faz determinar de dentro para fora o estilo do discurso. Em muitas situações, na fala de Makar irrompe a polêmica aberta – a réplica antecipável do outro se insere na narração:

“Eu sei muito bem, é claro, que não faço nada demais copiando minutas; mas, assim mesmo, me sinto orgulhoso de trabalhar e ganhar meu pão com o suor do meu rosto [...] Minha letra é boa, clara e agradável de ver, Sua Excelência está muito satisfeito comigo”.

A chave bakhtiniana é pertinente, pois ela não segue os cânones da linguística, sintaxe ou gramática, centra-se no discurso e na voz que ressoa. Assim como em Gente Pobre, acontece o mesmo o Duplo, O adolescente, Memórias do Subsolo, embora os heróis sejam de tipos diferentes.

Ao criar as respostas do outro, o personagem acaba projetando o espaço da consciência do outro. Nesse sentido, cria a consciência do outro a partir de seu próprio olhar, por outro, e à sua revelia, cria um olhar enviesado de sua própria imagem que emerge numa refração de seu próprio discurso.

Ainda observa Bakhtin, a propósito da novela Memórias do Subsolo, o que resta para o herói é tão somente o aviltamento de sua imagem no outro. Segundo o crítico literário, esse gesto é uma tentativa desesperada de ver-se liberto da força exercida sobre ele pela consciência do outro, e com isso abrir em direção a si mesmo um caminho pelo qual baste a si mesmo. Por isso ele torna deliberadamente vil seu discurso sobre si mesmo. Procura destruir em si qualquer vontade de parecer herói aos olhos do outro (e aos próprios).

O que é notável nas novelas, O Duplo, Memórias do Subsolo, Um Jogador e Gente Pobre é que o “outro” real só pode entrar no mundo dos personagens, apenas com o outro fictício, com o qual ele já vem travando sua polêmica interior desesperada. Qualquer voz real do outro se funde inevitavelmente com a voz do outro que já soa aos ouvidos do herói. E a palavra real do “outro” é igualmente arrastada para o perpetuum mobile como todas as réplicas antecipáveis do outro.

Ao longo de sua primeira obra, o autor russo levanta polêmica com as escolas tradicionais de literatura, nessa fase notoriamente com a Escola Natural que desenvolviam estilo por razões apenas pecuniárias. Utilizando elementos da paródia, ele dramatiza seu embate na voz de um coadjuvante Rotoziáiev – um escritor que vive na pensão de Mákar Diévuchkin, que ao explorar sua admiração ingênua, pretende usá-lo como um aporte literário recebendo de gratuitamente trabalhos de cópia.

O personagem secundário mencionado acima é a voz das correntes literárias, em que Dostoiévski impunha-se contra fluxo. No romance é um picareta versátil que produz trabalhos ruins, com pouco espírito, de qualquer gênero e explorava a ignorância de Diévuchkin, que se impressionava facilmente com algumas de suas novelas baratas. A intenção de Dostoiévski também era criticar medíocres imitadores de Walter Scott.

Dostoiévski em sua primeira obra elabora um estilo que será característico de todas as suas criações posteriores, a intensa antecipação do discurso do outro.

Mesmo obras mais complexas como o Idiota, Os irmãos Karamázov, os discursos auto-confessionais, são dominados pela mais tensa atitude em face da palavra antecipável do outro, da reação do outro diante do discurso confessional destes. Em os irmãos Karamázov, as enunciações da personagem Ivan Karamázov, são evasivas éticas e metafísicas determinadas pela antecipação da palavra do outro.

Em Gente Pobre, mais um exemplo do discurso de Diévuchkin em face da palavra imaginada do outro com mirada em torno e em sua interrupção com evasivas:

“Eu moro na cozinha, ou seria bem mais correto dizer assim: aqui ao lado da cozinha (mas, preciso lhe dizer, a nossa cozinha é limpa, clara, muito boa) existe um quartinho, pequeno, um cantinho modesto... (...)” ···.

Chamamos a atenção que após cada palavra a personagem lança uma mirada para a sua interlocutora ausente, teme que ela o imagine queixoso, procura destruir a impressão produzidas pela notícia de que ele vive na cozinha, não quer lhe causar desgosto. Segundo a intenção de Dostoiévski um personagem pobre e orgulhoso sente constantemente sobre si um olhar repreensivo, mal- intencionado, de reproche e sua mirada para o discurso do outro determina além do estilo, a maneira de pensar e sentir, de ver e compreender a si e o mundo que o cerca.

A orientação do indivíduo em relação ao discurso e consciência do outro é essencialmente o tema fundamental de todas as obras dostoievskianas.

Em determinada passagem quando Várvara pede para que Diévuchkin leia a novela O Capote de Gógol, ele o interpreta como sendo a palavra de um outro sobre si mesmo e procura destruir essa palavra com a polêmica por lhe ser inadequada.

Em resumo o que procurei definir neste trabalho, pela chave Bakhtiniana, é que na autoconsciência do herói, penetrou a consciência que o outro tem dele, na autoenunciação do herói está lançada a palavra do outro sobre ele; a consciência e a palavra do outro despertam fenômenos específicos que determinam a evolução temática da consciência de si mesmo.

As particularidades nessa chave são o discurso com mirada em torno, o discurso veladamente polêmico e interiormente dialógico, que em Gente Pobre os contornos foram levemente esboçados na maneira típica de um funcionário. Na mesma chave do discurso, porém com características sociais, econômicas e culturais diferentes, constrói-se o discurso de outros heróis.

Em o Duplo, a personagem Goliádkin, a polifonia é mais intensa, principalmente porque o eixo temático é a loucura. Os traços de discurso dessa obra são a simulação de independência e indiferença, a vontade de esconder-se e a subordinação ao discurso do outro. Não um discurso monológico que se baste a si mesmo e ao seu objeto. Cada palavra dita é dialogicamente decomposta, ou seja, em cada uma, há uma interferência de vozes. No entanto, nessas obras iniciais de Dostoiévski ainda não se verifica o autêntico diálogo de consciências imiscíveis que aparecerá posteriormente nos romances.

Outra forma muito difundida entre as obras de Dostoiévski é a confissão e o discurso com evasiva. Falaremos deles:

A confissão tem uma finalidade – destruir sua própria imagem no outro, depreciá-la no outro, como última tentativa desesperada de libertar-se do poder que a consciência do outro exerce sobre ele, e com isso abrir um caminho em direção a si mesmo e para si mesmo. É isso que está no pensamento do homem reativo – para retornarmos a Nietzsche e Deleuze.

O homem reativo faz um discurso baixo, pesado, vil, sobre si mesmo. Nessa reatividade ele somente pode lutar contra o outro imaginariamente, não tem condições de admitir que é influenciado pela consciência do outro, nesse circulo vicioso não tem condições de poder receber o outro enquanto outro, o devir-outro (Bergson e Deleuze), enquanto não reconhece a força do outro como outro.

“Para vocês, eu já não sou o herói que anteriormente quis parecer, mas simplesmente um homem ruinzinho, um chenapan...”[4]

Notamos também que há no discurso duas vozes se contrapondo. Uma que se autocondena e outra mais surda que a primeira que quer a absolvição do outro.

Na esteira de Bakhtin, o homem do subsolo no empenho de esmagar a sua própria imagem e o seu próprio discurso no outro e para o outro, aparece o desejo de uma lúcida determinação, mas também o desejo de pregar uma peça no outro. Ele procura um caminho para se libertar dessa reatividade, mas o faz somente pelo cinismo e depreciação do outro e da vida.

O discurso com evasiva é um pouco diferente. É o diálogo interior do herói com ele mesmo, que se entrança com seu diálogo com o outro – claro o outro como uma ficção.

É um tipo de recurso que o homem reativo, na denominação de Deleuze, emprega para reservar a si mesmo a possibilidade de mudar o sentido último e definitivo do seu discurso.

Na esteira de Bakhtin, esse possível outro sentido, é o que a evasiva acena o que dito de outro modo é como uma sombra que segue a palavra. A intenção é colocar não um ponto final, mas um ponto condicional, ou segundo um pensamento emprestado de Deleuze, poderia ser também um ponto vazado, aquilo que não se fecha na esperança de se conectar com algo.

A evasiva cria um tipo especial de última palavra fictícia sobre si mesma com tom aberto, que fita obsessivamente os olhos do outro e exige do outro um desmentido sincero. Esse recurso torna flexíveis todas às auto definições das personagens, o discurso destas não se fixa em seu sentido, mas a cada instante, à semelhança de um camaleão, está pronto para mudar a cor e o seu último sentido.

A evasiva deforma profundamente a atitude do herói em face de si mesmo, ele não sabe mais de quem é a opinião, de quem é a afirmação, enfim, seu juízo definitivo. É uma forma de vida que o impossibilita de saber se é a sua própria opinião arrependida e condenatória ou a opinião do outro que o aceita e o absolve (opinião no íntimo desejada por ele).

Em o Idiota, esse é o lema de Nastássia Fillípovna, que se considera culpada, decaída e, no entanto, para ela o outro, enquanto outro, deve absolvê-la e não pode considera-la culpada. O Príncipe Míchkin, é um criação dostoievskiana, do homem que considera puro e perfeito, ele a absolve de tudo e com a mesma intensidade odeia, e não pode aceitar todos aqueles que estão de acordo com a condenação que Nastássia imputa  a si mesma e a consideram moralmente decaída. O traço comum entre Fillípovna e o homem de Memórias do Subsolo são a interferência de duas vozes, a absolvição antecipável exigida de outros com a autocondenação. Toda a vida desses dois personagens se resume à procura de si mesma e de uma voz não cindida através dessas duas vozes que se instalaram em seus diálogos internos.

Dostoiévski termina suas novelas inserindo nos heróis uma tendência a infinidade de um diálogo interno, que não proveitoso para cada personagem, o tipo reativo, segundo tipologia de Nietzsche e Deleuze..

Para concluir este breve estudo, concluo que o diálogo com Dostoiévski, ao pensamento de Deleuze e Nietzsche é de suma importância. Não é uma articulação fácil, pois o escritor russo nunca pretendeu ser rigorosamente um filósofo. Nele o caldo filosófico está na voz, na fala, no discurso, na intensidade da escrita, no pensamento, e na polêmica aberta ou velada dos personagens.

As palavras de suas personagens sobre o mundo são ora veladas ora abertamente polêmicas; e não só com outras pessoas, mas com ideologias divergentes e, sobretudo com o próprio objeto do pensamento. Nas evasivas metafísicas de personagens mais sofisticados com Ivan Karamázov, também se revelam sempre vozes entrançadas, entre as quais, ele não pode encontrar a si próprio nem seu universo.

Aparece no diálogo com si próprio ou com o outro, e do relacionamento das vozes umas com as outras uma noção deleuze-nietzcheana: A força não é uma força por si, ela pressupõe uma relação. Em cada uma das vozes travadas nos diálogos do romancista, concluímos que as vozes de todos os personagens, são como diferentes velocidades, qualidades de força, singularidade e intensidades comunicantes, que divergentes não formam um todo, um quebra-cabeça, em que as peças se encaixam umas nas outras, mas nem por isso deixam de se comunicar.

 

 

Referências Bibliográficas:

 

BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.3-192.

_______. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

DOSTOIÉVSKI, F. M. Gente Pobre. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Ed. 34, 2003.

_______. O duplo. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2011.

_______. Memórias do subsolo. Trad. B. Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2000.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Rio de Janeiro, Ed.Rio, 1976.

FRANK, Joseph. Dostoiévski: As sementes da revolta: 1821-1849. São Paulo. EDUSP,1999.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

________. Obras incompletas. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

                          

           



[1]  Consta no posfácio de Gente Pobre, por Fátima Bianchi, pg.180, Editora 34, 2009.

[2] Nikolai Vasilievich Gogol (1809-1852) foi um proeminente escritor. Sua nacionalidade é motivo de polêmica, pois sua cidade natal fazia parte do Império Russo na época, mas atualmente pertence à Ucrânia. Como consequência, tanto a Rússia quanto a Ucrânia reivindicam a sua nacionalidade. Apesar de muitos de seus trabalhos terem sido influenciados pela tradição ucraniana, Gogol escreveu em russo e sua obra é considerada herança da literatura russa. Toda a sua obra é fundada no realismo, mas um realismo muito próprio, com rasgos do que viria a ser o surrealismo.

[3] Alexander Sergueievitch Púchkin (1799-1837), foi um romancista e poeta russo da era romântica que é considerado por muitos como o maior poeta russo e fundador da moderna literatura russa. Púchkin foi pioneiro no uso do discurso vernacular em seus poemas e peças teatrais, criando um estilo de narrativa que misturava drama, romance e sátira associada com a literatura russa, influenciando fortemente desde então os escritores russos seguintes. Ele também escreveu ficção histórica. Sua Marie: Uma História de Amor Russa fornece uma visão da Rússia durante o reinado de Catarina, a Grande

[4] F.M Dostoiévski. Memórias do Subsolo, Ed.34, pg.154