Amor e Transitoriedade na Poetica do Audaz Navegante: análise do conto de Guimarães Rosa

Amor e Transitoriedade na Poetica do Audaz Navegante: análise do conto de Guimarães Rosa

Amor e Transitoriedade na Poética do Audaz Navegante: análise do conto de Guimarães Rosa

 

 

Por Luciana Carvalho dos Reis 1

 

 

Resumo: Este trabalho faz uma análise do conto “A partida do audaz navegante”, de Guimarães Rosa, tendo como fio condutor a tradição oral, na perspectiva de demonstrar o olhar dos narradores: Guimarães Rosa e a personagem Brejeirinha, os quais transitam pelo entre-lugar deixando transparecer o elo de amor que unem o conto e a narrativa de Brejeirinha, além dos personagens Ciganinha e Zito que passam a integrar “a pontinha da realidade”.

 

Palavras-chave: Entre-lugar. Transitoriedade. Amor. Narrativas.

 

Abstract: This Work does an analysis of the tale “A partida do audaz navegante”, of Guimarães Rosa, having as thread conductor the oral tradition, in perspective of demonstrate the look of the narrators: Guimarães Rosa and the character Brejeirinha, which transiting by the in-between leaving transpire the love’s link that unites the tale and the narrative of Brejeirinha, beyond of the characters Ciganinha and Zito that pass the integrate “the tip of the reality”.

 

Keywords: In-between. Transience. Love. Narratives.

 

 

 

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1 Mestranda em Ciências da Educação pela Olford Walters University, nos Estados Unidos. Foi Aluna especial em Estudos Literários na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e Pós-graduada em Língua e Literatura Espanhola pela Faculdade de Tecnologia de São Francisco (FATESF), pertence ao Grupo de Estudos Interdisciplinar de Transgressão (GEITES) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Docente concursada pela Secretaria Estadual de Educação do Estado do Espírito Santo (SEDU), Brasil, Contato: luciana.reis@educador.sedu.es.gov.br

 

Amor e Transitoriedade na Poética do Audaz Navegante: análise do conto de Guimarães Rosa

“Quem, ainda que envolvido e não

desnavegado em margem, não tomou na

boca toda dos sentidos, ainda que em

silêncio oculto, o sabor da margem?”

Homi K. Bhabha

 

O conceito de entre-lugar, termo nomeado por Silviano Santiago nos anos 1970 em seu ensaio o entre-lugar do discurso latino-americano, reconfigura as fronteiras difusas entre centro e periferia, cópia e simulacro, autoria e processo de textualização, literatura e uma variada multiplicidade cultural que circunda o pós-moderno e ultrapassa os limites, fazendo do mundo uma teia de entre-lugares. É nesse ambiente, neutro, clandestino, que sublinha o ritual antropófago da literatura latino-americano, no qual ela se realizaria entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão e entre a fabulação e a realidade por meio da linguagem.

Guimarães Rosa, em 1962, ao publicar o conto A partida do audaz navegante, traz ao leitor uma narrativa infantil, pautada na fabulação de crianças e no mergulho reatualizado do conto de fadas. Ao tecer a estória, Rosa, cria um espaço intermediário que tange para o fechamento que convém ao conto como ponto de convergência. Temos então, dois narradores Rosa e a personagem Brejeirinha como demonstra o ponto de convergência a seguir:

Mas Brejeirinha punha a mão em rosto, agora ela mesma empolgada, não detendo em si o jacto de contar: ─“O Aldaz Navegante, que foi descobrir os

outros lugares valetudinário. Ele foi num navio, também, falcatruas. Foi de sozinho. Os lugares eram longe, e o mar. O Aldaz Navegante estava com saudade, antes, da mãe dele, dos irmãos, do pai. Ele não chorava. Ele precisava respectivo de ir. (ROSA, 2001, p. 470).

 

Aqui, o entre-lugar surge num elo de uma história de amor entre a narrativa de Brejeirinha e a narrativa do conto, narrada por Rosa. A narrativa de Brejeirinha é uma história de amor. O audaz navegante parte com sua amada. Além de Brejeirinha, duas irmãs e o primo são personagens do conto. Suas irmãs Pele e Ciganinha e o primo Zito não participam da narrativa de Brejeirinha. Mas Brejeirinha arquiteta sua narrativa a partir da relação entre sua irmã Ciganinha e Zito, o conto ínsita o leitor entender que se trata de uma personagem mais madura em relação às outras duas irmãs (Pele e Brejeirinha) e Zito, uma espécie de alter ego de Guimarães Rosa, cabe lembrar que esse era o apelido de infância do autor. Ao apresentar as personagens, Rosa, revela a memória que se ficcionalizou dentro de um contexto poético, aqui podemos notar a  ausência de nomes, existem apenas apelidos.

 

Mamãe, a mais bela, a melhor. Seus pés podiam calçar as chinelas de Pele. Seus cabelos davam o louro silencioso. Suas meninas-dos-olhos brincavam com bonecas. Ciganinha, Pele e Brejeirinha ─ elas brotavam num galho. Só o Zito, este, era de fora; só primo. (ROSA, 2001, p. 469).

 

A fantasia de Brejeirinha irrompe a partir da narrativa do conto que aponta a relação entre Ciganinha e Zito. Ambos se amando e sem audácia para seguir em frente. Com a narrativa de Brejeirinha, percebe-se que para o amor tem que ser audaz, é preciso audácia para seguir e concretizar o amor. O primo tem que ser mais audaz para aprofundar o amor com Ciganinha. A fantasia possui um vínculo pré-estabelecido com a realidade. Ela não é um sinônimo para disparate, pois, a fantasia é partícipe de um pensamento. Ao fantasiar abre-se o pensamento para o descoberto, o que pode ser mostrado. Com a fantasia de Brejeirinha, em sua narrativa, vê-se o descobrimento do amor. E da força do amor que une e felicita a vida, é o que vem confirmar a personagem Brejeirinha:

 

─“O Aldaz Navegante não gostava de mar! Ele tinha assim mesmo de partir? Ele amava uma moça, magra. Mas o mar veio, em vento, e levou o navio dele, com ele dentro, escrutínio. O Aldaz Navegante não podia nada, só o mar, danado de ao redor, preliminar. O Aldaz Navegante se lembrava muito da moça. O amor é original...”(ROSA, 2001, p. 472).

 

A recente publicação Sem fraude nem favor, do psicanalista e professor da UERJ, Jurandir Freire Costa2, apresenta leitura contestatória de três afirmações, praticamente consensuais, que sustentam as crenças dominantes, relativas ao amor romântico:

1)o amor é um sentimento universal e natural, presente em todas as épocas e culturas; 2) o amor é um sentimento surdo à “voz da razão” e incontrolável pela força de vontade e 3) o amor é a condição sine qua non da máxima felicidade a que podemos aspirar.3

A presença do amor em todas as culturas confirma sua gratuidade e fundamenta a crença na universalidade e naturalidade do amor. Aprende-se, por conta disso, a  “valorizar o amor com um bem desejável”4 ao mesmo tempo que se confia em sua 

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2COSTA, J.F.op.cit.,p. 13.

3Idem, ibiem.

universalidade e naturalidade.

No entendimento do psicanalista, dizer que o amor é universal revela reconhecimento de semelhanças e identidades entre experiências amorosas do passado e do presente, sempre ensinadas e retransmitidas. Quando se aprende a história dos grandes pares amorosos da humanidade, está-se, de fato, aprendendo a reconhecer o amor que devemos experimentar deverá ser, também, “algo grandiosos, mágico, que atravessa o tempo e o espaço com a força de um bem extra-humano e extramundano.”5

A narrativa de Brejeirinha funciona como um para texto da narrativa do conto. Há a coordenação de pensamento entre o narrador do conto Partida do audaz navegante e a narradora Brejeirinha. A fantasia de Brejeirinha é alocada por uma situação real e conectada a uma realidade. Impelida pela linguagem, irrompe na narrativa sua fantasia. É o que vem confirmar Ramos:

 

Restam hoje algumas pistas desta origem ou, para dizer de outro modo, alguns sinais fora da linguagem. Parece uma experiência cotidiana, ainda acessível a todos, estranhar subitamente o som de determinada palavra como demasiado abstrato ou inverossímil em relação àquilo que designa, e o velho jogo infantil de repetir indefinidamente um mesmo vocábulo até que perca qualquer ligação com aquilo que procura indicar talvez queira nos conduzir, apenas, de volta a uma época em que cada coisa tinha seu peso sinestésico, e tanto a cor como o sabor como a imagem eram o índice livre para aquele pássaro flechado. (RAMOS, 2010, p. 23).

 

A história de amor faz-se presente através da linguagem na narrativa que desabrocha. O aldaz navegante para Brejeirinha e o audaz navegante para Pele, que para nós leitores se mostra como crítica a linguagem utilizada por Brejeirinha. “Pele levantou a colher: ─“Você é uma analfabetinha “aldaz”(ROSA, 2001, p. 471).  O simulacro poético (audaz/aldaz) é realidade e não ficcionalidade. Brejeirinha utiliza-se de uma nova linguagem para extravasar e se comunicar nos apresenta as vogais doçuras (a, e, o) e vogais ácidas (i, u), é o que vem comprovar o recorte:

Mamãe ia visitar a doente, a mulher do colono Zé Pavio. ─“Ah, e você vai conosco ou sem-nosco?” ─ Brejeirinha perguntava. Mamãe, por não rir nem se dar de alheada, desferia chufas meigas: ─“Que nossa vergonha!...” ─ e a dela era uma voz de vogais doçuras. (ROSA, 2001, p. 471).

 

 

 

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4Id., ib.

5Id., ib..

Para a narrativa, a fantasia faz-se necessária porque abre a fenda para o extraordinário, lembrando a morfologia do conto maravilhoso. Aquilo que não pode ser visto por olhos imediatos e simplificadores. Do ponto de vista real, uma porção de estrume é somente fezes bovinas. Já para a fantasia, se há utilidade e um viés de pensamento, logo se pode adquirir valor qualquer objeto ou forma. Assim, o Aldaz Navegante é presentificado através da forma de esterco bovino para uma forma humana, segundo Brejeirinha.

─ “Nã-ão. Não vale! Não pode inventar personagem novo, no fim da estória, fu! E ─ olha o seu “aldaz Navegante”, ali. É aquele...” Olhou-se. Era: aquele ─ a coisa vacum, atamanhada, embatumada, semi-ressequida, obra pastoril no chão de limugem, e às pontas dos capins ─ chato, deixado. Sobre sua eminência, crescera um cogumelo de haste fina e flexuosa, muito longa: o chapeuzinho branco, lá em cima, petulante se bamboleava. O embate e orla da água, enchente, já o atingiam, quase.Brejeirinha fez careta. Mas, nisso, o ramilhete de Pele se desmanchou, caindo no chão umas flores. ─ “Ah! Pois é, é mesmo!” ─ e Brejeirinha saltava e agia, rápida no valer-se das ocasiões. Apanhara aquelas florinhas amarelas ─ josés-moleques, douradinhas e margaridinhas ─ e veio espetá-las no concrôo do objeto. ─ “Hoje não tem nenhuma flor azul?” ─ ainda indagou. A risada foi de todos, Ciganinha e Zito bateram palmas. ─“Pronto. É o Aldaz Navegante...” ─ e Brejeirinha crivava-o de mais coisas ─ folhas de bambu, raminhos, gravetos. Já aquela matéria, o “bovino”, se transformava. (ROSA, 2001, p. 471).

 

Quando a fantasia opera há a possibilidade de novos parâmetros com novos sentidos. Dessa maneira, o sentido novo indica um novo valor, longe da trivialidade. Assim, os objetos ganham nova roupagem, tal como, as palavras que adquirem um novo sentido. Se a viagem do Aldaz Navegante é permeada pela ternura na narrativa de Brejeirinha, já que é uma viagem cerceada de acordo com um plano sentimental, por outro lado, pelo fato corriqueiro da realidade, o Aldaz Navegante nada mais é que uma forma de estrume levado pelas águas da chuva. Para a fantasia, o novo sentido doa maior renovação na narrativa.

Tanto os mitos como as estórias de fadas respondem a questões eternas: O que é realmente o mundo? Como viver minha vida nele? Como posso realmente ser eu mesmo? As respostas dadas pelos mitos são taxativas, enquanto o conto de fadas é sugestivo. Esses contos deixam à fantasia da criança o modo de aplicar a ela mesma o que a estória revela sobre a vida e a natureza humana. Brejeirinha convida os outros a narrar:

Ciganinha e Zito sorriram. Riram juntos. ─“Nossa! O assunto ainda não parou?” ─ era Pele voltada, numa porção de flores se escudando. Brejeirinha careteou um “ah!” e quis que continuou: ─“...Envém a tripulação...Então, não. Depois, choveu, choveu. O mar se encheu, o esquema, amestrador... O Aldaz Navegante não tinha caminho para correr e fugir, perante, e o navio espedaçado. O navio parambolava... Ele , com o medo, intacto, quase nem tinha tempo de tornar a pensar demais na moça que amava, circunspectos. Ele só a prevaricar... O amor é singular...”(ROSA, 2001, p. 472).

 

 A narrativa procede de maneira consoante ao caminho pelo qual uma criança pensa e experimenta o mundo; por esta razão são tão convincentes para a criança, que pode obter um consolo muito maior de um conto de fadas do que de um esforço para consolá-la baseado em raciocínio e pontos de vista adultos. Uma criança confia no que o conto de fada diz por que a vida de mundo aí apresentada está de acordo com a sua. È o que vem atestar Rosa:

 

Segredando-se, Ciganinha e Zito se consideram, nas pontinhas da realidade. ─“Hoje está tão bonito, não é? Tudo, todos, tão bem, a gente alegre... Eu gosto deste tempo...” E: ─“Eu também, Zito. Você vai voltar sempre aqui, muitas vezes?” E: ─“Se Deus quiser, eu venho...” E: ─“Zito, você era capaz de fazer como o Audaz Navegante? Ir descobrir os outros lugares? E: ─“Ele foi, porque os outros lugares ainda são mais bonitos, quem sabe?...” Eles se disseram, assim eles dois, coisas grandes em palavras pequenas, ti a mim, me a ti, e tanto. Contudo, e felizes, alguma outra coisa se agitava neles, confusa ─ assim rosa-amor-espinhos-saudade. (ROSA, 2001, p. 474).

 

            Qualquer que seja nossa idade, apenas uma estória que esteja conforme aos princípios subjacentes a nossos processos de pensamento nos convence. Se for assim com os adultos, que aprenderam a aceitar que há mais de um esquema de referências para compreender o mundo – embora achemos difícil senão impossível pensar verdadeiramente segundo outro que não o nosso - é exclusivamente verdadeiro para a criança. Seu pensamento é animista. Como todas as pessoas pré-alfabetizadas e várias instruídas, a criança assume que suas relações com o mundo inanimado formam um só padrão com as do mundo animado das pessoas: ela acaricia como faria com sua mãe, as coisas bonitinhas que lhe agradam; ela golpeia a porta que bateu nela. Deveríamos acrescentar que ela age da primeira forma porque está convencida de que essa coisa bonita gosta de ser acariciada tanto quanto ela; e castiga a porta porque está certa de que a porta bateu por intenção malvada. Por mais que os adultos lhe dizem que as coisas não podem sentir e agir; ela finge acreditar nisto para agradar a esses adultos, ou para não ser ridicularizada. Sujeita aos ensinamentos racionais dos outros, a criança apenas enterra seu "conhecimento verdadeiro", mas no fundo de sua alma ele permanece intocado pela racionalidade; no entanto, pode ser formado e informado pelo que os contos de fadas têm a dizer.

Para a criança não existe uma linha clara separando os objetos das coisas vivas; e o que quer que tenha vida tem vida muito parecida com a nossa. Se não entendemos o que as rochas, árvores e animais têm a nos dizer, a razão é que não estamos suficientemente afinados com eles. Para a criança que tenta entender o mundo parece razoável esperar respostas daqueles objetos que despertam sua curiosidade. E como a criança é egocêntrica, espera que o animal fale sobre as coisas que são realmente significativas para ela, como fazem os animais nos contos de fadas, e da maneira como a própria criança fala com seus pertences ou animais de brinquedo. Uma criança está convencida de que o animal entende e sente como ela, mesmo que não o mostre abertamente.

É na forma poética da linguagem que a linguagem revela seu abismo e seu centro, sua essência, que não é ocultar ou desvelar um sentido escondido. Ela nasce não como positividade de um sentido, mas como negatividade, ausência de sentido. A linguagem não representa as coisas. A linguagem se dobra sobre si mesma. A verdade de uma linguagem está na sua permanente proliferação. A esse respeito encontro em Ramos a seguinte reflexão:

Mas talvez não importe tanto fabular sobre a origem da linguagem quanto compreender a enorme cisão que ela causou. Pois uma vez amarrada esta corda entre todos, uma vez expulsos ou mortos aqueles não quiseram valer-se dela, não há mais estranhas das ferramentas, da mais exótica das invenções (a linguagem), parecer tão natural e verdadeira quanto uma rocha, um cajado ou uma cusparada. Este é seu verdadeiro fundamento, sua, digamos, astúcia- a de substituir-se ao real como um vírus à célula sadia. Há aí uma potência de esquecimento que não pode ser diluída, uma armadilha na agonia que serviu a alguns (e não a todos), sacrificando violentamente àqueles que não a utilizaram. (RAMOS, 2010, p. 22-23).

 

A criança fabula, Brejeirinha convida as outras personagens a participarem da estória, que possui três planos narrativos: realidade ouvida (cotidiano), realidade do passeio e a fabulação que Brejeirinha criou. É ficção em cima de ficção, o homem do farol, “Aí? Então... então... Vou fazer explicação! Pronto. Então, ele acendeu a luz do mar. E pronto. Ele estava combinado com o homem do farol... Pronto. E...” a partida do barco do audaz, como concretização da metáfora: “E agora”. Os olhos de Brejeirinha, “bilo-bilo”.

─“Então, pronto. Vou tornar a começar. O Aldaz Navegante, ele amava a moça, recomeçado. Pronto. Ele, de repente, se envergonhou de ter medo, deu um valor, desassustado. Deu um pulo onipotente... Agarrou, de longe, a moça, em seus abraços... Então, pronto. O mar foi que se aparvalhou-se. Arres! O Aldaz navegante, pronto. Agora, acabou-se, mesmo: eu escrevi ─”Fim”!”(ROSA, 2001, p. 473).

 

A obra literária moderna questiona os limites da obra. A grande transformação da arte moderna, para Blanchot, é que ela tende para a obra, e não para o artista. A obra é um exercício, “busca obscura, difícil e atormentada. Experiência essencialmente arriscada, na qual a arte, a obra, a verdade e a essência da linguagem são postas em causa e entram no espaço do risco.” (BLANCHOT, 1984, p. 207).

Só a afirmação que existe na obra importa, e ela só é importante por conduzir à busca da obra. A experiência artística, literária moderna é transgressora, subversiva, contestadora, mas não a história ou a cultura. Obra da ausência de obra, ela duvida de si mesma, fala de sua própria ausência de seu desmoronamento:

 

(...) a essência da literatura é escapar a toda determinação essencial, a toda a afirmação que a estabilize ou realize... o que cada livro persegue como se fosse a essência do que ama e desejaria apaixonadamente descobrir, é a não-literatura. (BLANCHOT, 1984, p. 210-211).

 

A escritura como experiência, Blanchot e Rosa nos mostram a linguagem falada por Brejeirinha como um elo de amor, Ciganinha e Zito saem da ficção e passam a integrar a realidade, permanecendo a poesia e a construção imaginística.

 

“─Agora, eu sei. o Aldaz Navegante não foi sozinho; pronto! Mas ele embarcou com a moça que ele amavam-se, entraram no navio, estricto. E pronto. O mar foi indo com eles, estético. Eles iam sem sozinhos, no navio, que ficando cada vez mais bonito, mais bonito, o navio... pronto: e virou vagalumes...”(ROSA, 2001, p. 474).

 

É a experiência da atração da origem: o desobrar, e a impossibilidade de “olhar” a origem: o obrar. Rosa traz a experiência do fora, de aproximação com o neutro, um espaço neutro. A literatura é a linguagem do neutro, do entre- lugar, onde a tensão dos contrários se mantém como paradoxo, não se dilui. Aberta a vertente para a construção imaginística, se percebe que o amor tocou a escrita literária e derramou sua porção mágica sobre a palavra dos mais variados sistemas culturais, ocupando-se definitivamente a cena poética de todos os tempos, atemporalidade, apesar de se apresentar com variações específicas em cada gênero literário, cada época e lugar.

Dificilmente define-se um sentido real para o amor. Sabe-se, entretanto, de sua natureza secreta e avassaladora para os que verificam e bebem do filtro mágico que os torna inconscientes e em permanente estado de delírio. Essa mesma natureza intervém sobremaneira naqueles que pretendem descrevê-la e que, para isso, se valem da linguagem dos símbolos, tão enganadora e envolta em brumas como a experiência da paixão.

O mesmo impulso do espírito que alimenta a paixão faz nascer à linguagem. A verdadeira paixão tende a narrar-se a si mesma, seja para se explicar, seja para se exaltar. De modo que se responsabiliza pela criação de certa retórica que viabiliza para uma nova história, caminho para tomada de consciência.

A sensibilidade instaura uma instância reveladora. Quem lê pode sentir o mostrar do amor se estiver aberto e receptivo para tal, assim como aquele que ama e é amado deve estar na abertura para receber e dar amor. Por muitas vezes, o amor é considerado como uma via única, já Guimarães Rosa nos mostra que o amor é uma via dupla incessante e contínua. O amor existe em doação e recepção. Não há amor perdido e nem achado, apesar da procura e do ganho. O amor é luminosidade, porque ilumina a via que é a vida. Viver e amar são sinônimos à medida que é um diálogo incessante e permanente. Assim como o Aldaz Navegante sentiu a falta da amada, a amada sentiu falta do amado, segundo a fabulação de Brejerinha, os enamorados encontravam-se nas duas pontinhas da saudade:

 

 “― ‘A moça estava paralela, lá, longe, sozinha, ficada, inclusive, eles dois estavam nas duas pontinhas da saudade... O amor, isto é... O Aldaz Navegante, o perigo era total, titular... não tinha salvação... O Aldaz... O Aldaz...’”(ROSA, 2001, p. 473).

 

O amor requer união. Brejeirinha fez sua narrativa e o amor possível. Sem ter amado, a personagem compreende o amor. Como desfecho da narrativa do Aldaz Navegante de Brejeirinha, unem-se os elementos amantes e amados em união harmoniosa. Pois o Aldaz Navegante e sua amada partem, enfim, juntos. A união harmoniosa prevalece onde o amor cativa. Assim, a luminosidade do amor transforma os amantes em vagalumes.

 

 

 

Referências:

 

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BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trd. Myrian Avila et AL. Belo Horizonte: Editora da UFMG,1998.

BLACHOT, Maurice. O livro por vir. Lisboa: Relógio d’Água, 1984.

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GUIMARÃES, Vicente. Joãozito: a infância de João Guimarães Rosa. 2ª ed. São Paulo: Panda Books, 2006.

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RAMOS, Nuno. Ó. São Paulo: Iluminuras, 2010.

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