A Atualidade dos Contos de Fadas

A Atualidade dos Contos de Fadas

A ATUALIDADE DOS CONTOS DE FADAS

 

                                                                                              Katherine Stravogiannis[1]

 

 

RESUMO: Muitos pais se queixam de que seus filhos apresentam medo de determinadas histórias infantis, sobretudo os contos de fadas, seja por causa da temida bruxa, lobo, ou qualquer outro elemento do enredo. É comum que a escola se depare com situações desconfortáveis em que a família proíbe o acesso da criança a determinada obra, alegando que esta estaria lhe causando distúrbios psicológicos, interferindo no sono ou simplesmente a assustando em demasia. Muitas obras são questionadas, visto que se espera sempre ações que configurem incentivo a valores positivos, tais como amizade, solidariedade, bem como um final feliz demarcado. Contudo, nem sempre é isso que ocorre, e os contos apresentam-se como referências atuais e necessárias.

 

Palavras-Chave: Medo. Educadores. Contos de fada. Valores. Atualidade

 

 

RESUMO:  Many parents complain that their kids are afraid of certain children's stories, especially the fairy tales, because of either the bad witch, wolf, or any other aspect of the literacy. It is common that the school is nowadays faced with awkward situations in which the family forbids the child's access to certain book, arguing that it would be causing psychological disorders, interfering in sleep or simply scaring children. Many books are questioned, mostly because it is always expected some actions that constitute incentives for positive values such as friendship, solidarity, as well as a happy ending demarcated. However, it is not always what occurs, and the tales are presented as current and necessary bibliographical references.

 

Key words: Fear. Educators. Fairy Tales. Values. Nowadays

 

INTRODUÇÃO

O breve artigo de opinião A Atualidade dos Contos de Fadas debruça-se com olhar psicopedagógico sobre os medos apresentados na infância, bem como tensão de educadores no que se refere ao acesso aos contos infantis.

O tema faz-se naturalmente relevante, visto que discussões atuais são reforçadas pelo sentimento de impotência dos pais diante da insegurança e temores dos filhos, ainda que inerentes à infância, bem como a controversa introdução de personagens que poderiam reforçar a negatividade e receios dos jovens leitores. Como os pais devem proteger seus filhos dos temidos vilões? A questão ideal revela-se embutida na própria pergunta. Proteger não parece a solução efetiva, muito pelo contrário, já que tais enredos podem ser compreendidos como necessários e saudáveis.

Para este problema central, faz-se necessário resgatar o contexto histórico no que diz respeito à literatura infantil, bem como estudos que revelam a importância dos contos para o desenvolvimento cognitivo-emocional das crianças. Para tais questões, a referência da psicanálise dos contos de fadas, sobretudo pela análise teórica do austríaco Bettelheim, nos oferece um referencial teórico de suma valia.

Interessa, portanto, ao investigador, além de conscientizar os educadores e pais sobre suas próprias condutas, assentir como o acesso à literatura pode contribuir para o desenvolvimento das crianças. Pretende-se também instrumentar educadores por meio de articulação teórica e alguma referência prática, já que os contos aproximam gerações. A escola deve garantir acesso a acervo de qualidade, e não apenas aos livros de imagens e temas idealizados. A Educação Infantil deve dotar de acervo qualificado, bem como, estar preparada para trabalhar a literatura de modo valorativo.

 

 

OS CONTOS ATRAVÉS DO TEMPO

 

Há tempos que o homem conta histórias… E há muito tempo, quando ainda nem se tinha ideia da possibilidade de existir a telecomunicação, quando os livros representavam grande parcela das opções de entretenimento na esfera familiar, os contos de fadas já eram amplamente difundidos, seja por razões disciplinares, religiosas ou sociais.

Com o passar das gerações, inúmeras reformulações transformaram os contos, mas o caráter fantástico era ainda encarado por muitos como “mentira”. Alguns escritores como Basílio, Charles Perrault, Jacob und Wilhelm Grimm, Andersen, passaram seus contos para a tradição oral, que perduram até a atualidade, mesmo com mudanças. Hoje, porém, já há estudos que revelam a sua importância para o desenvolvimento cognitivo-emocional das crianças.

Belos? Talvez nem tanto se os observássemos unicamente sob a limitada perspectiva moderna; contudo, inegavelmente densos, repletos de significação e valores notórios até hoje. E, ao contrário da vã preocupação de muitos de que os contos não falam para a nossa sociedade, estes são atemporais, e até hoje permitem que as crianças projetem inconscientemente parte delas mesmas em várias personagens do enredo. E isso as deixa seguras. Afinal, como encarar as tragédias do mundo sobre as quais os adultos não falam abertamente, senão amparadas pelas páginas de um livro, que se torna cada vez mais previsível? O livro é uma forma segura de controlar os perigos do mundo hostil e misterioso que nos cerca. E se tiverem os vilões, com os quais os pequenos controlam os sentimentos de medo, ainda mais interessante.

Fosse diferente, os contos e certos personagens não existiriam até os tempos atuais. É certo que há mudanças significativas em muitos deles, como adaptações em que a censura à retaliação do Lobo Mau faz-se presente – enquanto contraditoriamente as crianças assistem passivamente aos telejornais em que muitas vezes o protagonista da abordagem não é ninguém menos do que um violentador e, em casos tão bizarros quanto este, assassinos de seus próprios progenitores.

 

OS CONTOS E O DESENVOLVIMENTO PSICOLÓGICO

 

Ainda que o contexto atual nos pareça violento, a cultura procura mascarar de modo demasiadamente otimista o lado obscuro e perverso do homem, tornando a vida fácil e apenas encantadora. Freud mesmo já buscava uma luta contra a natureza problemática do homem, sem recorrer ao dito escapismo.

Chegamos, pois, à luz da psicanálise dos contos de fadas, à atualidade deles que, não por acaso, coexistem com a violência cotidiana. E as crianças? Parecem necessitar subsídios para compreender o complexo mundo adulto, das normas, das punições, da heteronomia… E muito mais efetivos do que sermões, do que lições moralistas, do que regras arbitrárias, estão os atrativos contos de fadas.

Dominar um problema significativo somente para ela a faz lutar pela resolução de determinado conflito, mesmo que por hora inconscientemente, já que desconhece o motivo que a faz ficar tão maravilhada diante de determinado enredo que traz, subjacente, mensagens significativas. Portanto, não podemos estipular idade, tampouco época para a qual um conto de fadas seja ideal. Contudo, há uma asserção a ser feita: de que estes favorecem o desenvolvimento da personalidade infantil, bem como fortalecem seu emocional, ao contrário das barreiras superprotetoras que por vezes insistimos em instaurar.

Para Bettelheim (1979) o crescimento acarreta problemas psicológicos, superação de decepções de cunhos diversos; o que faz com que a criança sinta uma necessidade de compreender o seu eu inconsciente. Essa compreensão dá-se de uma maneira demasiadamente complexa, alheia à superficialidade da razão, mas através da reorganização do imaginário, dos devaneios, do conteúdo inconsciente unido às fantasias conscientes. Aí estaria, portanto, o valor ímpar de um conto de fada: imagens sugestivas, dimensões imaginárias que por si só talvez a criança pequena não tenha recursos cognitivos para alcançar.

Ao observarmos grupos de crianças em momentos de narrativa, é absolutamente nítido o fato de que estas ingressam em um mundo imaginário, exercendo o denominado jogo simbólico, ou seja, entrando em contato com um universo fantástico no qual misturam realidade e ficção. E como sentem prazer em fazer parte desse universo! Não é à toa que inúmeros autores se sentem atraídos por estudos voltados ao universo da literatura infantil…

Diferentemente de nós, as figuras nos contos de fadas não são ambivalentes, boas e más simultaneamente. Enquanto uma personalidade representa o bem, a outra representa o mal (“maniqueísmo”) - o que faz com que a criança as distinga facilmente, o que certas vezes torna-se “camuflado” na vida real.

Se voltarmos ao psicólogo austríaco Bruno Bettelheim (1903- 1990), mais especificamente em sua obra A psicanálise dos contos de fadas (1979), veremos que ele também relata sobre a identificação das crianças com determinada personagem ou história infantil. Afinal, reconheceu a importância dessas histórias no desenvolvimento integral desta criança que busca significados para seus próprios dilemas através da temática subjacente àquela determinada situação. Esta acabaria por auxiliá-la na vivência e encontro de significados implícitos e relacionados ao seu contexto real. A imagem, o contexto simbólico seria uma maneira motivadora de ativar sua compreensão, sua lógica.

 

O ADULTO COMO EMANCIPADOR DO CONTEXTO LITERÁRIO

 

Vejamos a situação que não se modifica: ao nos depararmos com uma criança, seja no contexto familiar ou escolar, requisitando a mesma história por inúmeras vezes, é fácil observarmos que ela obtém prazer em compreender determinada problemática do enredo, em dominá-la, em antecipar seus perigos, em vivenciar o medo inicial, em saber controlá-lo – fazendo e aprendendo esse processo ao longo da repetição das histórias.

Nesse ponto, percebemos a remanescente importância do contador de histórias, seja ele representado pela mãe, pelo pai, educador etc. Como bem sabemos, a criança adquire seus hábitos também por imitação, sendo assim necessário que o adulto-modelo desempenhe tanto o seu papel de leitor (para si), quanto de contador de histórias, que lhe confira vida, que lhe empregue alma, a ponto de não transformar o maravilhoso numa mera leitura insípida.

Contudo, cabe ao adulto permitir que a criança vivencie a história, sem interpretá-la para ela, sem quebrar-lhe o encanto explicando-lhe o motivo pelo qual ela é tão atrativa, privando-a de compreender seu conflito interior, de dominar a problemática da história por si só.

Em grupos de crianças em idade maternal (absolutamente contemporâneas, à propósito), ao contemplar a leitura da história “Os três Porquinhos”, por exemplo, é possível verificar que há sempre a criança que solicita a repetição, sob aprovação unânime dos demais. Os pequenos reproduzem os movimentos, simulam o bufar do lobo, enquanto outros, atentos, escondem-se nas suas aparições – mas assim mesmo sentem prazer em temê-lo.

E não é por acaso, afinal, permitir-se ser o dominante de determinada situação é uma sensação no mínimo prazerosa, não apenas para os que realmente os são, mas para aqueles que gostariam de senti-lo, uma vez que a situação real nem sempre os permite vivê-lo.

É também possível observar o uso de expressões recorrentes entre as crianças, como “Era uma vez…”, “E viveram felizes para sempre!”, “Em um reino bem distante…” empregadas em todo o tipo de história, além de narrativas verídicas de suas vidas. A incorporação do mundo fantástico ao mundo real é fato inegável.

Além disso, há o uso de recursos de marcação temporal, que organiza o pensamento e atribui sequência lógica a seus recontos: “E então…”, “Daí veio o lobo e…”, “Depois de tudo isso…”, “Finalmente apareceu…” etc, sem citarmos a questão da memorização de falas significativas: “Entrar nessa casa, ora, nem pensar…”; “Eu vou soprar, bufar, e esta casa vai voar…” etc.

Em experiências como essa, pode-se observar que os pequenos não se preocupam com a moral, com o que é errado, com aquilo que é socialmente imposto. Meninos passavam-se por personagens femininas, usando acessórios e roupas característicos sem restrição alguma e o contrário também.

 

CONCLUSÃO

 

Os contos, mais do que nunca, são atuais e necessários ao desenvolvimento moral e psicológico dos pequenos. Portanto, cabe-nos valorizar e permitir, mais do que nunca, que as crianças encontrem nos contos de fadas e enredos diversificados aquilo que as fascina, que lhes fale em linguagem real e acessível o que é real e significativo para elas fora do nosso tempo e nosso espaço determinados.

Assim, para compreendê-los, é necessário antes de tudo compreender-se como sujeito repleto de emoções em um mundo às vezes dificultoso, e não tentar ingenuamente esquivar-se dos sentimentos e conflitos. Afinal, eles sempre existiram e existirão! Vide os fascinantes recontos dos pequeninos e verás que, por mais assustadoras que sejam as ameaças da sociedade moderna, ainda assim, para os pequenos, é possível “viver feliz para sempre”!

 

 

REFERÊNCIAS

 

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

BORGES, Maria Luiza X. de (trad.). Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004

COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. São Paulo: Ática, 1987.

VON FRANZ, Marie Louise. A interpretação dos contos de fada. São Paulo: Paulinas, 1990.

 


[1] Coordenadora pedagógica, formadora, atua na Educação Infantil há mais de 15 anos, licenciada em Letras alemão e português pela USP, pedagoga e psicopedagoga, especialista em Educação Infantil; relações interpessoais e autonomia moral na escola pela UNIFRAN e mestranda em Ciências da Educação kathes@me.com; kstravogiannis@yahoo.com.br