VIGOTSKI E AS BORBOLETAS DE ZAGORSK

VIGOTSKI E AS BORBOLETAS DE ZAGORSK

VIGOTSKI E AS BORBOLETAS DE ZAGORSK

Daniela Leal

 

Dê-me tua mão, que eu te direi quem és.

Em minha silenciosa escuridão,

mais clara que o ofuscante sol,

está tudo o que desejaria ocultar de mim.

Mais que palavras,

tuas mãos me contam tudo o que recusavas dizer.

Frementes de ansiedade ou trêmulas de fúria,

verdadeira amizade ou mentira.

Tudo se revela ao toque de uma mão;

quem é estranho, quem é amigo.

Tudo vejo na minha silenciosa escuridão.

Dê-me tua mão, que eu te direi quem és.

Natasha Krilatov[1]

 

Ao dedicar-se a pesquisa histórica ou mesmo ao estudo de teóricos de séculos passados, geralmente surgem muitos questionamentos sobre qual a importância ou qual o objetivo do estudo dos mesmos. No caso, mais especificamente desta resenha, que se dedica a falar de uma escola fundamentada nos princípios de um teórico do início do século XX, por muitas vezes escuta-se: por que olhar para Lev S. Vigotski e sua teoria sobre a defectologia, pensada nas duas primeiras décadas do século XX, se estamos em pleno século XXI?

Pode-se dizer que, ao olhar o conjunto da obra de Vigotski (Tomo V, das Obras Completas), com base nos teóricos que davam suporte à teoria dos fundamentos de defectologia e às contribuições significativas que este realizou para se pensar à educação das pessoas com alguma deficiência e/ou dificuldade no processo de escolarização, pode-se afirmar que, a fala de Vigotski, no início do século XX, faz-se tão presente hoje quanto em sua época.

Para Vigotski, ao deparar-se com uma criança que se desvia do tipo humano “normal”, acometida pela insuficiência da organização psicofisiológica, surge uma profunda divergência entre o desenvolvimento natural e o desenvolvimento cultural dessa criança; ou seja, “qualquer insuficiência corporal – seja a cegueira, a surdez ou a deficiência mental congênita – não só modifica a relação do homem com o mundo, mas, diante de tudo, se manifesta nas relações com a pessoa” (VYGOTSKI, 1997, p. 73). Isto porque, segundo o autor,

Todo o sistema da cultura humana [...] está adaptado à organização psicofisiológica normal do homem. Toda a nossa cultura pressupõe um homem que possui determinados órgãos – mãos, olhos, ouvidos – e determinadas funções do cérebro. Todos os nossos instrumentos, toda a técnica, todos os signos e símbolos estão destinados para um tipo normal de pessoa. (VYGOTSKI, 1997, p. 185).

Tal afirmação pode ser observada em alguns dos depoimentos encontrados no Documentário As Borboletas de Zagorsk, produzido pela BBC no ano de 1992, ao relatar o trabalho realizado em uma escola russa com crianças surdas e cegas, com base na teoria e nos estudos realizados por Vigotski:

Muitas crianças antes de irem para a Escola de Zagorsk eram consideradas deficientes mentais, o que lhes causava grande desestruturação [...].

Ou, ainda, no depoimento de uma de suas ex-alunas e principal depoente do documentário, Natasha[2]:

Lá, em Zagorsk, diferente de quando vim para a minha casa, eu aprendi a me comunicar com todos (professores, funcionários); aprendi como compreender as ideias confusas que fazia do mundo naquela época. Eles me ajudaram a viver melhor no mundo, apesar de não ter sido um processo fácil.

Para compreender melhor essa relação da criança com deficiência sob as determinações histórico-culturais, como descrito por Natasha, Vigotski apóia-se nos estudos sobre a defectologia, para propor uma nova prática que auxilie na criação de instrumentos culturais especiais e adaptados à estrutura psicológica da criança com deficiência, assim como a utilização de procedimentos pedagógicos especiais que a levem a dominar esses instrumentos.

Na Escola de Zagorsk é possível observar que a utilização de procedimentos pedagógicos especiais é uma constante para o desenvolvimento dos surdos-cegos. Ora utilizavam-se de aparelhos de ampliação dos sons, para que pudessem aprender e entender a fala pelas vibrações emitidas pela caixa de som ou cordas vocais (tadoma); ora por intermédio das letras do alfabeto manual (LIBRAS), realizado com uma única mão. Cabe destacar que, as pessoas com baixo resíduo visual fazem e veem os sinais no ar, já as completamente cegas precisam do toque, ou seja, elas sentem pelo toque das mãos os sinais, as letras que estão sendo realizadas.

Segundo os estudiosos da área, as crianças que ficam cegas e surdas muito cedo não possuem referencial de imagens e sons, portanto, contam somente com as mãos para aprender. No início aprendem os gestos, depois aprendem a falar com os dedos e, finalmente, a ler em Braille, como observa-se na descrição de Natasha:

O alfabeto manual no começo era estranho e surpreendente. Percebi que podia ver e ouvir com minhas mãos, além dos olhos e ouvidos. A partir daí, a ordem entrou em meu mundo.

Apesar da palavra defectologia soar negativamente, Vigotski utiliza-a em seus primeiros escritos sobre os problemas das crianças surdas-mudas, cegas e deficientes mentais, na tentativa de apresentar uma teoria que compreenda a criança com deficiência, antes de tudo, como uma criança e não somente por sua deficiência.

Vigotski mudou a minha vida quando era estudante. As suas ideias eram a mola motriz da Psicologia Soviética [daquela época] – Natasha.

Todavia, apesar dos escritos defectológicos serem de grande importância e contribuição para a educação das pessoas com deficiência, principalmente por ter sido o “grande laboratório, onde as hipóteses e mesmo as leis da psicologia puderam ser levantadas, confirmadas e elaboradas” (MOTTA, 2004, p. 52) com relação às questões que acometem as pessoas com algum tipo de deficiência, bem como a importância da educação social e do potencial de desenvolvimento dessas crianças, atualmente, o termo defectologia, por estar intrinsecamente relacionado ao termo defecto, ou seja, defeito, não se faz presente nas discussões e documentos sobre as pessoas com deficiência. Entretanto, não se pode esquecer que a teoria que fundamenta tal termo, encontra-se pautada em um dado momento histórico, com termos específicos e utilizados nesse período, além de que, em sua essência, busca valorizar as capacidades e habilidades da pessoa acometida por uma deficiência, em vez de focar-se apenas nas impossibilidades que a deficiência traz, independente de soar muitas vezes pejorativamente.

Historicamente, sabe-se que a defectologia, antes de atingir as ideias de uma educação moderna e transformadora para o ensino das crianças com deficiência, concebia a tendência ao defeito apenas de forma aritmética, ou seja, suas práticas eram voltadas somente à análise das limitações das pessoas com deficiência. Vigotski (1997, p. 12), por acreditar que a tendência ao defeito não deveria ser concebida desta forma, afirmava que,

a concepção meramente aritmética da deficiência é um traço típico da defectologia antiga e caduca. [Sendo assim,] a reação contra este enfoque quantitativo de todos os problemas da teoria e da prática constitui o traço mais substancial/fundamental da defectologia moderna.

Ou, ainda, como descrito pelo próprio autor, “[...] a criança cujo desenvolvimento está dificultado pelo defeito, não é simplesmente uma criança menos desenvolvida que seus companheiros normais, e sim, desenvolvida de outro modo” (VYGOTSKI, 1997, p. 12).

Embasado nessa concepção de que a criança com deficiência não é inferior às demais, mas apresenta um desenvolvimento de outro modo, Vigotski acreditava que o desenvolvimento infantil apresentava uma enorme diversidade, variando de uma criança para outra. E, nesse sentido, diante das ideias de uma defectologia moderna, poder-se-ia denominar e explicar o que ocorre nessa peculiaridade para, então, estabelecer os ciclos e as transformações do desenvolvimento e chegar à descoberta das leis da diversidade. Desse modo, o profissional, ao trabalhar com a criança com deficiência, compreenderia que independentemente do defeito, essa criança se desenvolveria como qualquer outra, porém, de um modo particular. Em suas palavras,

[...] o estudo dinâmico da criança com defeito não pode limitar-se a determinar o nível e a gravidade da insuficiência, mas inclui obrigatoriamente a consideração dos processos compensatórios, ou seja, substitutivos, sobrestruturados e niveladores, no desenvolvimento e na conduta da criança. Assim como para a medicina moderna o importante não é a doença, mas o doente, para a defectologia o objeto não constituí a insuficiência em si, mas a criança acometida pela insuficiência. (VYGOTSKI, 1997, p. 14).

Em função da continuidade de seus estudos sobre a reabilitação das crianças com desenvolvimento diverso do de seus pares “normais”, Vigotski acrescentava que se fazia necessário não somente uma compensação funcional, mas também uma reestruturação de todas as forças do organismo e da personalidade dessa criança. Tal evolução em seu pensamento pode ser observada quando afirma que para uma pessoa com deficiência visual alcançar as mesmas metas dos que podem ver, geralmente necessita de meios e instrumentos que diferem daqueles utilizados pelos videntes. O relato de Natasha revela significativamente tal evolução:

Como meus professores eram capazes de enxergar e ouvir, eles nem sempre eram capazes de compreender-me corretamente, mas recordo, com gratidão, da paciência com que eles realizavam seu trabalho.

Demonstrando, assim, implicitamente, que a necessidade do uso de meios e instrumentos diferenciados para o desenvolvimento da pessoa com deficiência fez-se sempre uma constante na prática de seus professores na Escola de Zagorsk; mais do que simplesmente ensinar um tipo de comunicação, os professores buscavam formas, meios e instrumentos de compreendê-la, de se fazerem compreender, para ocorrer uma efetiva aprendizagem, bem como a reestruturação de todas as forças do organismo e da personalidade de Natasha ou dos demais estudantes.

Posto isso, observa-se que Vigotski (1997) dá mais um passo à frente, ao perceber que além das características biológicas (núcleo primário) existem as características determinadas pelas relações sociais (núcleo secundário). O autor acredita que é o meio social uma das principais barreiras que dificultam a construção de um novo caminho para a reestruturação das funções lesadas. Em suas próprias palavras, “[...] absolutamente todas as peculiaridades psicológicas da criança deficiente têm em sua base um núcleo não biológico, mas social” (VYGOTSKI, 1997, pp. 80-81).

A partir dessas colocações, percebe-se que a Escola de Zagorsk, ao partir do princípio que toda criança pode aprender e desenvolver-se, tal como apregoado por Vigotski, conseguia resgatar as crianças e os jovens surdos-cegos do isolamento que, muitas vezes eram submetidos, e equipá-los com os instrumentos adequados para sua sobrevivência no mundo externo e para sua reestruturação psicofisiológica. Afinal, tal princípio vigotskiano buscava, em sua essência, garantir uma educação produtiva e de qualidade, que deixasse de lado seu aspecto segregador – oriundo das instituições de caráter asilar, filantrópico e assistencialista – para agregar ao sistema educacional as características da escola especial (recursos e técnicos) e princípios da escola comum.

Referências Bibliográficas

BBC. As Borboletas De Zagorsk. Série Os Transformadores. Grã Bretanha: BBC, São Paulo: Televisão Cultura, Fundação Padre Anchieta, 1992.

BARROCO, S. M. S. A Educação Especial do Novo Homem Soviético e a Psicologia de L. S. Vigotski: implicações e contribuições para a psicologia e a educação atuais. Tese (Doutorado em Educação Escolar) – Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, 2007.

MOTTA, L. M. V. M. Aprendendo a Ensinar Inglês para Alunos Cegos e de Baixa Visão: um estudo na perspectiva da teoria da atividade. Tese (Doutorado em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2004.

VYGOTSKI, L.S. Fundamentos de defectologia. Obras Escogidas. Tomo V. Madrid: Visor, 1997.

 


[1] Fragmentos do poema escrito e recitado por Natasha durante o documentário As Borboletas de Zagorsk.

[2] Natasha tinha 13 anos quando foi para a Escola de Zagorsk e apresentada à forma de ensino de Lev S. Vigotski. Na época do documentário, Natasha já havia se formado em filosofia e psicologia, com especialização em psicologia infantil, era casada com Yuri e tinha duas filhas.