Resenha do livro O Adolescente (1875) de Fiódor M. Dostoievski

Resenha do livro O Adolescente (1875) de Fiódor M. Dostoievski

Resenha do livro O Adolescente (1875) de Fiódor M. Dostoievski

Giuliano de Méroe

 

O adolescente, publicado em 1875, é considerado umas das cinco obras principais de Dostoiévski, a altura de Crime e castigo, O idiota, Os demônios e o último de seus livros - Os irmãos Karamazov. Porém, O adolescente é o livro menos conhecido dentre eles – como aponta uma nota da Editora 34: A crítica literária de seu tempo avaliou-o como ruim, com interpretações muito rasas, devido à incompreensão da estrutura que o autor adotou:  Fragmentada, com muitas digressões baseada nas memórias do  adolescente o protagonista Arkádi Dolgorúki, e o autor quis por em relevo os limites do modo de racionar do personagem, sem forçar qualquer análise mais sofisticada das imensas contorções psicológicas que envolvem as tramas da Obra.

O livro é narrado em primeira pessoa por um jovem de vinte anos, Arkádi Dolgorúki. E nos mostra os anseios e as tentativas deste em ser aceito nas altas esferas da sociedade russa da época. Dolgorúki é filho ilegítimo de Versílov, um proprietário de terras com uma humilde serva. Criado longe da família, em um internato de elite, Arkádi ressente-se muito da falta de sua origem, por não ser reconhecido como pertencente à nobreza, e com essa ofensa em sua alma decide conhecer seus parentes e pôr em execução um plano que maquinou durante todo o seu isolamento: o de tornar-se um milionário, "um Rothschild" (trata-se de um dos figurões milionários de seu tempo, o banqueiro inglês James Rothschild) e assim com esse acúmulo de dinheiro e poder, superar sua mágoa pela origem bastarda.

Assim que chega a São Petersburgo, todo entusiasmado pela chance de conhecer melhor a figura paterna e disposto a colocar em prática seu plano ambicioso, o adolescente Arkádi começa a frequentar as rodas sociais da família. Á medida que vai conhecendo melhor essas pessoas, sua vida toma um rumos inesperados. Ao especular sobre o passado do pai, Arkádi se envolve em um emaranhado de histórias suspeitas em que cada um parece contar apenas o que lhe é conveniente.

Um dos focos do romance está na relação problemática entre pai e filho; particularmente em temas filosófico-ideológicos, que representa as batalhas entre o velho modo convencional de pensar dos anos 1840 e do novo ponto de vista niilista da juventude dos anos 1860 da Rússia.

Para quem estuda Dostoievski, é a evolução de seu pensamento que está em jogo, superando as estruturas histórico-formais de 1840, e por um ideal artístico expresso na literatura.

 Trata-se de um personagem ofendido, sem quase ter visto a mãe nos seus primeiros anos de vida e atormentado por uma dupla existência parental - o pai biológico, Andréi Petróvitch Versílov, e o marido de sua mãe, o camponês Makár Ivánovitch, que lhe deu o nome.

Enquanto se adapta a nova vida em Petersburgo, o rapaz recebe uma proposta de emprego para trabalhar com o príncipe Sokólski, um senhor rico de saúde frágil. O adolescente fica como um secretário do Príncipe, organizando sua vida pessoal e redigindo cartas e documentos. A situação com o tempo lhe gera um conflito moral, pois com o tempo percebe que seu trabalho é na verdade, servir companhia ao Príncipe, que se sente melhor, mais disposto com o frescor do rapaz.                     

Com um trabalho e morando em um quarto de um apartamento de seus familiares, aos poucos vai se integrando no mundo dos adultos, e acaba por se enredar em uma trama que inclui a luta por heranças, um círculo de intelectuais revolucionários, casamentos por conveniência, chantagistas e uma carta que poderá mudar o destino de todos.

Na primeira parte do romance vemos Arkádi com sentimentos opostos em relação ao pai, de um lado revoltado, e com muita admiração pela dimensão moral totalmente excêntrica.  De início, porém, ganha força em Arkádi a figura negativa do pai, as informações mal entendidas que colhia o fazei acreditar, indecência moral de Versílov, como um retrato pérfido do homem conquistador, desprezível, que se aproveitava da fraqueza e das dificuldades de mulheres desprotegidas e desamparadas pela vida.

 Posteriores esclarecimentos o fazem rever seus conceitos sobre o pai, reconstruindo sua imagem e reconciliando-se com ele. O caso de suicídio da jovem Ólia: Uma professora desempregada, em situação de penúria financeira, recebe a visita de Versílov com promessa de ajuda. As circunstâncias em torno da jovem a fizeram distorcer totalmente a imagem de Versílov. Influenciada por um grupo de meretrizes que a induzem à prostituição, a jovem passa a desconfiar das intenções de Versílov, como um agente, e sem mais suportar sua falta de esperança, apela ao suicídio.

 Dolgorúki ao se inteirar dos fatos, pelas pútridas palavras de Stebélkov (um agiota,  indivíduo de caráter mesquinho, que depois é preso por seus crimes), acreditava nas más intenções de seu pai, no entanto descobre que tudo não se passava de intrigas mesquinhas do próprio Stebélkov, o verdadeiro culpado da morte de Ólia.

A Trama principal envolve as Versílov e o jovem Arkádi, que acabou de chegar a São Petersburgo para viver com a família (sua mãe, a camponesa Sofia, e a irmã também ilegítima Lisa). Dolgorúki carrega uma carta, costurada em seu paletó, que lhe fora confiada e que compromete Katerina Akhmákova, a bela viúva de um general e princesa por direitos próprios. Na carta ela pedia a um advogado de confiança da família, um conselho para a internação de seu velho pai, o Príncipe Sokólski, em uma instituição para loucos; e ela receia que ele a deserde, se vier a conhecer esse documento. Katerina e Versílov estão à procura dessa carta e suspeitam que Arkádi possa ter algum envolvimento no sumiço desse documento.

O livro contém outras duas subtramas, cada uma relativa a uma filha de Versílov. Uma está focada em sua filha legítima com a primeira esposa falecida, Ana Andréivna, que tem planos que envolvem o velho príncipe Sokólski, que no decorrer da história é sequestrado pela jovem Ana, que planeja casar-se com ele e, assim, garantir seu futuro. Uma segunda subtrama está focada na irmã de Arkádi, Lisa, que mantém um caso amoroso com o jovem Príncipe Sokólski e fica grávida desse fidalgo bem-intencionado, mas instável.

Dostoiévski pretendeu ilustrar com essas tramas o caos moral da sociedade russa, principalmente a decadência dos valores da aristocracia; cada aspecto mostra alguma violação do código moral que rege as relações entre os sexos. Cada desdobramento tem em mira ressaltar por contraste a trama principal. Por exemplo: Arkádi, que se apaixona por Katerina e é perturbado por seus desejos, vê-se tentado a agir como Ana Andréievna e chantagear a orgulhosa Katerina. Mas ele não o faz dessa maneira.

Seu pai biológico Versílov e os dos príncipes Sokólski são iguais na fraqueza pelo sexo feminino; mas o pai de Arkádi, apesar de todos os defeitos, é dotado de uma dimensão moral e filosófica totalmente fora da escala dos outros. Não se importa com o dinheiro; o velho príncipe por sua vez faz parte da diretoria de várias sociedades por ação e o mais jovem está preso às garras de Stebiélkov, um agiota inescrupuloso e falsificador de títulos.

A figura central do romance é o adolescente Arkádi, cujos problemas podemos encontrar justificativa na observação de Dostoiévski, que o criou o jovem, “tocado pela profundidade de uma alma ainda pura, que já permite conscientemente que o vício penetre em seus pensamentos (...)”; todos os seus desafios estão na tensão dos seus valores e da consciência moral. Arkádi não deseja ser um Rothschild para mergulhar no prazer do luxo, dos privilégios e saciar seu apetite de grandeza, mas unicamente pela sensação de poder que essa fortuna lhe traria, e depois tendo conquistado o que ele chama de “consciência da força solitária” devolve esse dinheiro, doando-o a toda humanidade.

“Então, não por tédio, não por enfado sem propósito, mas porque tenho um desejo ilimitado do que é grandioso, darei todos os meus milhões, deixarei que a sociedade distribua minha riqueza e eu (...) voltarei a misturar-me com a nulidade”.

O adolescente submetia-se a uma disciplina, vivendo com apenas chá, pão e sopa, que para Dostoievski é na verdade, um desejo muito intenso de auto sacrificar-se em nome de um objetivo mais digno. Essa mesma conjunção de idealismo é vista em Versílov, apesar desses traços se manifestarem de forma diferente no aristocrata, que já se mostrava cansado do mundo altamente sofisticado e hipócrita.

Ao conhecer a nova cidade, o jovem acaba conhecendo o círculo de Dergatchov, um grupo de estudantes liberais, com anseios revolucionários. Um dos membros, Kraft, comete suicídio ao convencer-se da própria ideia, que preconizava que os russos são um povo de segunda categoria, e que jamais desempenharia um papel independente na história da humanidade. Sua crença minou sua ideia-sentimento de trabalhar pela “causa comum”, por um povo do futuro, ainda por vir, composto por todo mundo sem distinção de raça[1].

A situação lembra a de personagem de Os Demônios, cuja destruição da fé de Kírilov em Cristo como Deus-homem, provoca uma crise que termina em suicídio.

A discussão que Arkádi trava com esse membro do grupo, é o momento em que o romancista transpõe sua própria crença – a necessidade de que a humanidade tenha uma fé irracional, uma fé em Cristo como Deus-homem e, portanto, uma crença na imortalidade e na ressurreição, como o único bastião seguro dos valores morais.

O adolescente conta para esse grupo, a história de um general que perdeu duas filhas e alguns meses depois morreu de tristeza. “O que poderia tê-lo salvo?”. “(...) um sentimento de força igual”. Seria preciso desenterra-las  e dá-las a ele. Considerações intelectuais e meramente racionais (somos todos mortais) de modo algum aliviariam sua dor, somente um sentimento de força igual poderia ter sido extraído de uma esperança inspirada por uma crença na imortalidade e ressurreição, arraigada na fé religiosa antiga.

Segundo Joseph Frank, biógrafo do autor russo, o romancista tem a habilidade artística de transformar seus pensamentos em diálogos, não um diálogo simples com ideias prontas. Cada personagem tem voz infinita para cada fase de seu pensamento. Os personagens com finais trágicos geralmente são aqueles que mostram como suas consciências soçobraram ao prolongar determinado ângulo de questionamento.

O pai legítimo do adolescente, Makár Ivánovitch Dolgorúki, capitaliza toda idealização do campesinato pelos populistas de seu tempo; retrata o peregrino religioso como uma pessoa de muita dignidade e pureza de coração. A serenidade e calma desse personagem dão ao jovem a inspiração moral que lhe faltava.

Na hora da morte do pai camponês, vimos que para ele a morte não é uma experiência angustiante, é uma realização natural da vida inspirada em Deus, e seria pecaminoso protestar contra esse término.

“Vocês podem me esquecer, meus caros, mas eu os amarei do fundo do túmulo.”

Totalmente a favor do trabalho das ciências, dos médicos, ele diz que é necessário a vida do “deserto”, com a vida de um asceta cristão inspirado pela fé, porque senão mesmo os  tipos mais nobres e amigos da humanidade, ”esquecerão sua grande obra e ficarão absorvidos nas pequenas coisas”.

Segundo Frank, muitas das narrativas do pai Makár ao jovem Arkádi, tem por fim iluminar a luta interior de Versílov, que espelha de maneira geral os sentimentos mais elevados da classe culta da Rússia.

A morte de Makár também tem um efeito moral em Versílov, este consegue expressar para Arkádi a “ideia” ou “visão”. Inspirado por um quadro de Claude Lorrain, Acis e Galateia, que retrata a Idade de Ouro, Versílov ilustra as ideias de Dostoievski sobre o futuro da civilização europeia e sua relação com a Rússia, que tende desvelar a unidade essencial do espírito russo.

“Como representante da mais alta cultura russa (...), “porque o mais alto pensamento russo é a conciliação universal de ideais, e quem, nessa época, no mundo inteiro, poderia entender esse pensamento”?”.

Versílov pregava a consumação do Reino de Deus, na afirmação de que esse tipo de nobre russo é o protótipo do “homem do futuro”, e seu papel é transcender as diferenças nacionais destrutivas.

A crença de Versílov, baseada numa descrição da Idade de Ouro, em que os homens, em vez de transferirem todo o seu amor do terreno para o sobrenatural, prodigalizá-lo-iam sobre si mesmos.

Arkádi, em determinado momento da trama tem inspiração moral suficiente para vencer a tentação de chantagear Katerina e decide não procurar vingança nem qualquer espécie de vantagem pessoal. Como narrador diz “Nesses momentos, decide-se o futuro de um homem, forjam-se suas opiniões supremas sobre a vida”.

Seu pai continua torturado pela paixão por Katerina e alia-se a Lambert para executar um plano para humilhá-la. Porém ele não consegue suportar a visão torpe de Lambert e nem este quando ameaça Katerina e arranca a arma da mão de seu cúmplice. Katerina desmaia ao vê-lo. Versílov a carrega nos braços e põe suavemente na cama. Na cena final, ele aponta arma para ela (pensando em se matar em seguida), quando Arkádi aparece, afasta o alvo e Versílov fere seu próprio ombro.  As coisas são arranjadas para público de que a polícia conclui que o Versílov, homem de família, cinquenta anos, de repente tinha declarado seu amor a uma senhora altamente respeitável, que por acaso não correspondeu aos sentimentos desse senhor, e assim, Versílov num momento de loucura, tentou se matar.

No final Versílov aparece semi-inválido indefeso ao lado da mãe de Arkádi, acariciando-a e seu empenho por um ideal tornou-se ainda mais forte. Arkádi parece que se corresponde com Katerina por cartas, num tipo de história ainda por vir, totalmente nova e ainda continua localizada no futuro.

Dostoievski termina o romance com comentários do antigo mentor de Arkádi em Moscou, Nikolai Semiónoviitch.

“Há muitos rapazes como você, cujos dons realmente ameaçam desenvolver-se para o pior ou para a subserviência, ou um desejo oculto de derrubar o status quo. Mas esse desejo de derrubar o status quo provém, no mais das vezes, de uma sede secreta de ordem e ‘nobreza’.”

Dostoievski faz uma alusão a Tolstói através desse mentor – “Heróis são originários da nobreza hereditária russa, porque somente entre esse tipo de russo culto é que há possibilidade de encontrar beleza e refinamento na vida, algo tão essencial a um romance se quiser deixar no leitor uma impressão de distinção”. Numa referência a Obra Guerra “(...) Um romancista que quisesse deixar impressão de distinção escreveria apenas romances históricos, visto que não existem mais tipos belos em nossa época. (...) pertenceria menos à literatura russa do que à história russa; forneceria um quadro artístico acabado de uma miragem russa, mas de uma que existiu realmente enquanto não se percebeu que era uma miragem”.

Há uma alusão ao romance Ana Kariénina, “o neto dos personagens retratados num quadro que mostra uma família russa da classe alta, de cultura, em três gerações num cenário histórico russo – esse descendente não poderia ser retratado de outro modo se não como um misantropo, um isolado; e uma triste visão a contemplar”. O personagem aludido é Liévin, que estava tentando levar avante a tradição, mas agora tinha uma sombria consciência de que fora uma “miragem”.

Na confissão final de Nikolai Semiónovitch “(...) Mas que escolha tem um escritor que não deseja escrever romances históricos, porém é possuído pelo desejo da cena presente! Ele vai ter de adivinhar (...) e enganar-se!”.

 

 

Bibliografia consultada:

 

Joseph, Frank. Dostoiévski: O Manto do Profeta, 1871-1881/ Joseph Frank; tradução de Geraldo Gerson de Souza – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007. 952

Dostoiévski, Fiódor. O adolescente; tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; ilustrado com os manuscritos do autor. – São Paulo: Editora 34, 2015 (1ª Edição).

 


[1] Dostoievski inspira-se na Idade de Ouro, retratada em um quadro de Claude Lorrain (1600-1682), Acis e Galateia.