Manuel Bandeira: A evocação de um passado recifense

Manuel Bandeira: A evocação de um passado recifense

MANUEL BANDEIRA: A EVOCAÇÃO DE UM PASSADO RECIFENSE

MANUEL BANDEIRA: THE EVOCATION A PAST RECIFENSE

                                                                                                           Luciana Carvalho dos Reis1

RESUMO

 Manuel Bandeira, recifense, após viver na cidade do Rio de Janeiro muda-se novamente para o Recife onde tem contato com gente humilde tais como vendeiros, açougueiros, quitandeiro e padeiros. Em 1928/1929 viaja para Minas Gerais e São Paulo e no ano seguinte publica Libertinagem (poemas de 1924 a 1930). Diante dos fatos, a proposta apresentada aqui, visa observar a projeção dos desejos do poeta em uma outra sociedade, que se contrapõe a uma sociedade real, na qual seu discurso se manifesta, numa forma invertida – a da sociedade alternativa imaginária.

 

PALAVRAS-CHAVE: Manuel Bandeira, Memória, Ludismo, Figuras-tipo, Sociedade, Linguagem.

 

ABSTRACT

 Manuel Bandeira, Recife, after living in the city of Rio de Janeiro moved back to Recife where he  has contact with humble people such as grocers, butchers and bakers. In 1928/1929 travels to Minas Gerais and São Paulo, and the following year published Libertine (poems from 1924 to 1930). Given the facts, the proposal presented here is intended to observe the projection of the desires of the poet in another company, which is opposed to a real society in which speech is expressed, in inverted form - the imaginary alternative society.

 

KEYWORDS: Manuel Bandeira, Memory, Luddism, Figures-kind, Society, Language.

 

 

1 INTRODUÇÃO

O discurso artístico tem uma função claramente conscientizadora. A arte, de fato, lida, não com o imaginário, mas, sim, com a realidade, por meio do imaginário, pois a imaginação não nasce das nuvens – ela é, ao contrário, o modo pelo qual nos apropriamos do real, da nossa experiência ou alheia, e reconstruímos como um saber pessoal. O discurso poético tem também essa função conscientizadora. Seu objetivo, muitas vezes, é pôr o homem na realidade, coloca-lo de frente para seu mundo, espelhado no mundo interior do poeta, que lhe é exposto para que ele, leitor, se coloque diante de si mesmo e dos outros homens, no seu aqui e agora, sem, no entanto, deixar de estar em contato imaginário com certa ancestralidade, contexto ou momento histórico – suas vivências, suas carências, etc. Tal argumento explica o fato de ser tão importante certo conhecimento da vida do poeta para uma leitura mais verdadeira da obra, considerando os aspectos temáticos, formais e de linguagem. A poesia acaba sempre por revelar algo do homem poeta que está inserido no coração da matéria e da história.

O discurso literário tem um valor substantivo, pois é uma obra de arte produzida para funcionar e para valer de modo específico. Funciona, assim, por exemplo, como operador da solução simbólica de conflitos e contradições históricas reais, insolúveis historicamente. Tal como Lévi-Strauss lembrava nos Tristes Tropiques, na estreita de Aristóteles, a literatura fornece ao homem modelos de resolução das contradições que o afligem na vida em sociedade.

 

2 A EVOCAÇÃO DE UM PASSADO RECIFENSE

 

O poeta Manuel Bandeira, ao projetar os desejos de uma outra sociedade, pretende enfocar, por uma sociedade real, na qual seu discurso se manifesta, numa forma invertida – a da sociedade alternativa imaginária - , aquilo mesmo que essa sociedade é historicamente; ao projetar seus desejos de outro mundo, de outra comunidade humana mais justa, mais feliz, mais harmoniosa ou ao retratar a terra natal e a família, ao trabalhar incansavelmente a linguagem e a forma poética, acaba por gerar, por meio de seus anseios – querer o que não tem -, a imagem alternativa dessa sociedade, injusta, infeliz e conflituosa.

Neste artigo, pretendo investigar se há, na atitude poética de Bandeira, com relação ao poema Evocação do Recife (Libertinagem), alguma força que não seja somente documental, mas de ancestralidade, de desejo de trazer à baila alguma coisa do mundo histórico das cidades ainda coloniais. Para isso, acho necessário tentar responder a uma pergunta: Há um tempo perdido no Recife?

Acredito que sim. O poema onde as lembranças se consolidam é escrito sob o signo de reminiscências e organizado também em função do Recife, sua terra natal, em Pernambuco. É nele que o lirismo de Bandeira se monta fortemente sobre o princípio analógico de algumas metaforizações do espaço físico, com que as coisas do mundo natural (exterior) podem passar a significar, por exemplo, coisas do mundo interior. É assim que ele põe em defrontação duas realidades como as figuras ocorrênciais que são atuantes no espaço exterior, natural – banheiros de palha, jangadas de bananeiras, ovos frescos e baratos e a preta das bananas com xale vistoso de pano da Costa – e as figuras-tipo que são actantes do espaço interior do poeta, já que aí a condição humana é decorrência da planetária.

Esse espaço interior, cultural, contextual, utiliza-se de tal modo das figuras-tipo, que tudo que o poema diga da primeira realidade funciona como plano de expressão da segunda realidade. O poema instrumentaliza o que ele mesmo diz do espaço exterior, fazendo-nos conhecer, por ele, o espaço interior do poeta o que o poeta diz, ficando a pertinência da transposição assegurada por um sema intersector – o fundamento da metáfora -, que garante existir algum traço ou alguns traços parcialmente iguais entre os termos da analogia.

O paraíso perdido da infância do poeta (que encontra seu plano de expressão exterior e interior, ao modo do parecer e ao modo do ser, nas figuras cosmológicas das paisagens, nos objetos que guardou na memória por associação – Rua da União, Rua do Sol, o cais da Rua da Aurora, Sertãozinho de Caxangá, Totônio Rodrigues que botava o pincenê na ponta do nariz), como veremos a seguir mostram que há elementos externos  que estão no espaço interior do poeta muito fortemente e que simbolizam um sentimento de carinhosa veneração – no plano da lembrança/ ludismo.

Por que conservou o Capibaribe, o cais da Rua da Aurora e o pincenê do velho Totônio Rodrigues que pensava ser São José? Como figura meramente ocorrencial? Como figura desconhecida, não deve ter feito nenhum sentido na primeira leitura do poema, ainda descontextualizado. No entanto, mais tarde, essa figura tornou-se uma figura-tipo, já tendo sido conhecido o seu papel no espaço interior do poeta: não é um depoimento simples e ao acaso sobre a flora e o costume veneratório da região.

Totônio Rodrigues e o cais da Rua da Aurora constituem muito mais: Totônio Rodrigues participava das festividades folclóricas do Recife a festa de Santo Antônio e São José; o cais onde à produção de açúcar escoava rumo à Europa e o rio Capiberibe/Capibaribe que corta a cidade nordestina. Nesse poema o que está no exterior não é somente fingimento. Há sim, uma naturalização do ser-poeta. O poeta reduz ao coração (recordar) os conteúdos, os referentes ao espaço cósmico, natural e o referente ao espaço interceptivo, humano, a elementos de uma estrutura elementar – plano de conteúdos: alma – coração – lembrança – ludismo - sofrer, articulando-se sempre na construção de um tipo de signo intratextual.

Apesar de começar seu poema invocando um Recife presente “Não a Veneza americana/ Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais/ Não o Recife dos Mascates”, anuncia uma Recife verdadeira, sem lugar comum, sem heróis, sem suas histórias reais de lutas e literatura as quais conhecemos “Recife sem mais nada”.

Ao reiterar o tema, ele pretende realizar, a meu ver, uma operação dupla e ondeante: progressivo-regressiva e regressivo-progressiva. Das cidadezinhas com suas características coloniais vai até a confissão e da confissão retorna às cidadezinhas por meio de Recife.

Alfredo Bosi afirma que a compreensão do processo de relação entre a palavra e a realidade vital faculta o entendimento de vários caracteres comuns a todos os grandes textos poéticos:

 

A palavra poética recebe uma espécie de efeito mágico do seu convívio estreito com o modo singular, pré-categorial, de ser de qualquer um desses aspectos. Este rio, aquele rosto, esta rosa, aquela nuvem: imagens e situações unitárias inconfundíveis: eis os “sujeitos” do poema.2

 

Para Bosi, ainda, singular não quer dizer isolado. O objeto separado, Recife, é um espaço exterior, o singular é o concreto. Singular é o momento pleno da vida, o mais rico e completo, por isso o mais difícil de ser expresso fora dos termos da imagem-som. O choque entre seus valores tradicionais adquiridos na província e no seio de sua família de formação patriarcal e as imposições da vida moderna no Rio de Janeiro e nas novas ideologias impostas pelo progresso acentua-se bastante. A sombra desse conflito nasce Evocação do Recife  (Libertinagem), a pedido de Gilberto Freyre3, na qual já se percebe um universo de mudança, padronizado ou mecanizado pelas raízes do modernismo, em outras palavras, diante das mudanças bruscas do cotidiano a que somos obrigadas a viver, o verso  aparece como forma única de consolação, e é por meio dele que o poeta reage contra o desconcerto do mundo. Outro fator é a consciência de que o poeta vive num universo em desaparição. É clara a dor que existe da perda do avô, assim com dói a morte do Recife, do desaparecimento das coisas. Registrado no último verso de Evocação do Recife (Libertinagem).

A linguagem do poeta é cuidada, caracterizada pelo emprego de palavras comuns, do cotidiano, às quais, muitas vezes dá novos significados, ampliando suas possibilidades de expressão. É o que se pode ver nos versos: “A gente brincava no meio da rua”/,  “No lado de lá era o cais da Rua da Aurora”/, “Ela se riu”. Outro recurso é utilizado por Manuel Bandeira, a repetição, “Recife”/, “Recife...” presente no decorrer do poema.

Diante de tais evidências, percebe-se que o poeta Manuel Bandeira, verifica na imobilidade do tempo, que a Recife de sua infância continua no caminho, porque suas retinas não podem esquecê-las. Ao avaliar sua terra natal, amadurecido pelo estrangeirismo do Rio de Janeiro não pode evitar o sentimento de perda, não esconde sua ternura melancólica, esse sentimento está presente na personificação da cidade nordestina que passa a fazer parte do espaço interior do poeta, e deixa de ser geografia para se tornar lirismo, altamente simbólico.

 

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Diante das questões levantadas, pode-se afirmar que o poeta mesmo que distante continua imobilizado no tempo com suas lembranças, pois busca através da sua arte projetar os desejos de uma outra sociedade, enfocando, por uma sociedade real, na qual seu discurso se manifesta, numa forma invertida – a da sociedade alternativa imaginária, aquilo que essa sociedade é historicamente.

Bandeira projeta seus desejos de outro mundo, de outra comunidade humana mais justa, mais feliz, mais harmoniosa. O poeta ao retratar a terra natal, a vizinhança e a família, ao trabalhar incansavelmente a linguagem e a forma poética, acaba por gerar, por meio de seus anseios –, a imagem alternativa dessa sociedade, injusta, infeliz e conflituosa.

Notas:

1 Mestranda em Ciências da Educação pela Olford Walters University, nos Estados Unidos. Foi aluna especial em Estudos Literários na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e Pós-graduanda em Língua e Literatura Espanhola pela Faculdade de Tecnologia de São Francisco (FATESF), pertence ao Grupo de Estudos Interdisciplinar de Transgressão (GEITES) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Docente concursada pela Secretaria Estadual de Educação do Estado do Espírito Santo (SEDU), Brasil, Contato: luciana.reis@educador.sedu.es.gov.br

2Cf. BOSI, Alfredo. O ser e o tempo na poesia. P. 113.

3 FREYRE, Gilberto. “Manuel Bandeira, Recifense”. In: Perfil de Euclides e outros perfis. Rio de Janeiro: JoséOlímpio, 1944; Manuel Bandeira: Seleção de textos – Coletânea organizada por Sônia Brayner – Rio de Janeiro:Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1980 (Coleção Fortuna Crítica). p. 76.[0]

 

4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:        

   

ABDALA JUNIOR, Benjamin. Literatura: história e política. São Paulo: Ática, 1989.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1990.

______. O ser e o tempo na poesia. São Paulo: Cultrix, 1983.

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987.

FREYRE, Gilberto. “Manuel Bandeira, Recifense”. In: Perfil de Euclides e outros perfis. Rio

de Janeiro: José Olímpio, 1944; Manuel Bandeira: Seleção de textos – Coletânea organizada por Sônia Brayner – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1980 (Coleção Fortuna Crítica). p. 76-81.