Escritos sobre História (Nietzsche) - Notas e Inflexões

Escritos sobre História (Nietzsche) - Notas e Inflexões

Notas e Inflexões – (Nietzsche, Friedrich: Escritos sobre História)   

 

Giuliano de Méroe  

                                                                                                                                                                                             

 

Os escritos de Nietzsche de combate às tendências de seu tempo e aos acadêmicos de sua ficaram conhecidos como Considerações Intempestivas.  A 1ª consideração Intempestiva foi uma crítica feroz ao escritor David Strauss, que na Obra a Vida de Jesus, pretendia ressignificar a fé cristã junto a ideais materialistas. Muitos leitores identificam Nietzsche de um modo apressado e indelicado, tendo-o por ateu, o que nunca foi o caso. Ocorre que Nietzsche tem uma sensibilidade muito aguda para nuanças, o movimento e tipo de pensamento que aparecem nos textos, e o que está sendo legitimado por eles, daí sua crítica que denuncia no esforço intelectual do autor os sentimentos e invectivas que se servem basicamente na culpa, ressentimento e ideal ascético.

 

A 2ª consideração intempestiva, projetada inicialmente como “Doença Histórica”, foi publicada como “Sobre a utilidade e os inconvenientes da história para a vida”. Sua escrita intensiva e extemporânea provocou forte reação dos filósofos hegelianos e aos historiadores da escola histórica de Berlim.

 

A segunda extemporânea é uma crítica ao historicismo, principalmente contra a filosofia de Hegel e dos valores cientificista da história. O ataque a Hegel[1], é porque na filosofia deste, busca-se uma explicação racional que reitera a incontestabilidade dos fatos, a utilidade, submissão e conformismo ao presente e ao ‘real’. Também critica uma obra de Hartmann[2], Filosofia do Inconsciente que tenta conciliar o pensamento schopenhaueriano com o processo universal hegeliano.

 

Nietzsche não se alia a nenhuma filosofia ou história que dispõe de fundamentos teleológicos (doutrina que se serve Hegel para determinar que cada realidade particular e o universo como um todo tem uma finalidade, que é a realização plena e exequível do espírito humano). Ao invés disso, ele em sua busca descobre historiadores que diferentemente de Hegel, procuraram não uma explicação geral para as massas, mas valorizar os grandes homens como uma diferenciação, um acontecimento a-histórico, incontestes ao fato e a exaltação do realismo. Esses grandes homens auxiliam a uma investigação histórica de outra natureza, em sua positividade, ou seja, extrair o sentido em que a história é útil à vida e em conformidade com os instintos e a natureza.

 

Na visão de Nietzsche a história tem dupla face: pode ter um efeito negativo e paralisante para a cultura, por valorizar acúmulos de discursos e conhecimentos distantes da cultura materna e dos instintos humanos, como pode ser encontrada nela uma força criadora, de elevação para a vida. Tudo depende de como e para que a história seja abordada. Sempre que o historiador abusa do seu olhar para o passado, esquece-se do presente e da perspectiva de futuro, a história se torna nociva para a vida. Contudo, quando nos voltamos no passado, não para ficarmos mergulhados nele, mas para buscarmos uma exemplaridade do que é fecundo e elevado, e quando isto nos inspira desejos mais altos, o sentido histórico volta a ser útil e criativo à vida de um indivíduo e de uma cultura.

 

A relevância da crítica é a constatação de que o sentido histórico como meramente como um conhecimento com o fim em si, se alça numa espécie de conformismo de mundo, capaz somente de enxergar o passado apenas como encadeamento e causalidade, e portanto, justificar o discurso do presente sobre o passado, como se a época atual estivesse no topo e sua medida para o passado é a melhor.

 

O excesso de historicismo foi alvo das críticas e reflexões de Nietzsche, seja em suas versões cientificistas, românticas, metafísicas ou realistas. Nietzsche também desmonta todas as categorias analíticas que ao explicar, acabam adoecendo a cultura e o homem.

 

Nietzsche observa que a perspectiva histórica não se desgarrou da velha metafísica, o que é provado pelo necessidade desenfreada de um conhecimento absoluto capaz de açambarcar todo o passado e desvendar toda a verdade por trás de coisas pequenas.

 

No livro Assim falou Zaratrusta, Zaratrusta, o personagem conceitual da narrativa dialoga com personagens que representam tipos diferentes engendrados pela cultura. O corcunda, por exemplo, representando o homem metafísico; o Aleijado às avessas, que entoa as crenças do homem culto, do especialista, do historiador... etc.

 

Não se trata de uma crítica anárquica ao sentido histórico e a erudição, mas quando assumem uma visão glorifica os fatos, e no momento em que se enviesam em suas categorias de análise petrificam o passado em representações; tudo o que há de grande, belo, enfim as forças que atuaram no passado na marcha de uma vida mais rica são desprezadas pela mimetização que a atualidade faz do passado. O passado apenas como um encadeamento mecânico do tempo faz com que na vida tudo se torne repetição e expiação.

 

Quando o estudioso se vê possuído por uma vontade que somente quer para trás, esquadrinhar o passado para explicar o presente, reitera-se uma metafísica espiritualizada que assim substancializa o tempo e a origem. A vontade de poder que para Nietzsche é a vontade criadora, é o grande remédio contra a queda da vontade, que somente enxerga o mal, do e castigo. A vontade de poder afirma e positiva o tempo, liberta o passado das cristalizações, libera-o do imperativo dos fatos consumados e o torna disponível sempre a novas interpolações capaz de tornar o presente mais grandioso.

 

Segundo o filósofo alemão, há outras maneiras de considerar o passado: pelo a-histórico e supra-histórico. O sentido a-histórico vê em cada acontecimento o sentido primordial da vida, sentido eternamente criador e doador de sentido e sempre presente. O supra- histórico, implica em que a ação do acaso está sempre presente nos grandes acontecimentos, é um sentido em que o mundo chega a seu termo em cada momento.

 

Em Nietzsche, o a-histórico e o supra-histórico constituem dois antídotos contra o mal uso da história. As forças a-históricas são a faculdade de esquecimento e da circunscrição num horizonte limitado, e as forças supra-históricas são a possibilidade de transferir o olhar do devir ameaçador para um horizonte ilimitado, para algo que afirme a eternidade da existência.

O a-histórico é a absorção total no atual, o que requer esquecimento, o não uso da memória.

O supra-histórico é a concentração no atual que dá um novo sentido ao devir (não se trata de um por vir meramente sequencial).

 

Que fique claro que Nietzsche não fala em extirpar o passado, nem absolutizar as perspectivas a-históricas e supra-históricas. Mas sorver do passado todas as peças e figuras monumentais que, como forças plásticas, potencializam o sentido, a cultura e a vida. A vida precisa do sentido histórico por três razões: Os homens perseguem fins e precisam buscar personagens e acontecimentos no passado que indiquem esses fins. A segunda razão é pertinente a conservação do passado, pois como haveria de outro modo a possibilidade de criar sentido? Em terceiro lugar, os homens precisam se libertar do presente. Nietzsche valida essas perspectivas, mas o que ele rejeita é o acúmulo compulsório e mimetizado que recusa o presente como uma possibilidade viva da diferença.

 

Há, portanto, para Nietzsche também duas formas de se considerar o passado : pela forma história e a a-histórica. A abordagem a-histórica é uma perspectiva do fato histórico, interpretada pelo sentido primordial que funda a vida. Nessa abordagem o que conta é o acúmulo do sentido que eleva a vida, então, por isso mesmo, ele valoriza que se estude cada grande homem do passado, por este possuir um diferencial maior do ele chamou de vontade de potência. “É em todo caso certo que os sábios de todos os tempos pensaram desta maneira a-histórica e que os milênios de eventos históricos não nos farão avançar um passo sequer no caminho da sabedoria”.

 

Por isso Nietzsche diz que a melhor abordagem é aquela que traz maior proveito para a vida. Todo hábito que temos de encadear causas, traduzi-las em sequência lógica, acaba por matar o fato e desperdiça todas as suas forças. A crítica que Nietzsche dirige ao historicismo é que ele transforma o fato em um simples dado histórico; para ele a história tratada como um puro problema de conhecimento está orientado no seu nível mais baixo, ou seja, para a informação, acúmulos de conhecimentos, então todas as explicações procuradas, o justificam num plano que em que ele deixa de ter qualquer incidência na vida, o fato morre como um ‘dado’ e perde-se todo seu frescor como uma potência capaz de atuar como forças vivas no presente.

 

Também as obras são prejudicadas, em função da cultura histórica dos críticos que impedem que ela produza um verdadeiro efeito, um efeito sobre a vida e sobre a ação.

 

Em outro momento acentua que as grandes verdades não podem ser provadas através de fatos insólitos ou com raciocínio erudito; elas somente são possíveis como experiências vividas pessoalmente a propósito de épocas e homens do passado.  A partir da mais elevada força do presente que se ganha o direito de interpretar o passado; é na tensão de nossos pensamentos que nos extrapolam que se permite visitar o passado naquilo que é grandioso e digno de ser conhecido e conservado.

 

“Não deveis depositar a vossa fé numa apresentação da história que não brote dos espíritos mais raros, e sempre havereis de descobrir a qualidade do seu pensamento, logo que sejais obrigados a formular uma proposição geral ou a retomar uma verdade bem conhecida”. É nisso que Nietzsche quer chegar, um espírito raro é quem pode transformar uma trivialidade histórica em uma ‘ eternidade’[3], que não termina de acontecer e podem ser revistada em seu frescor.

 

Sem dúvida é também uma crítica à filosofia historicista de Hegel, e a sua maneira de pensar, através de busca por teorias, por meio das quais poderia se sentir justificada a sua submissão fatalista aos fatos. Sua filosofia era de que a razão superior estava do lado do vencedor, para justificar o Estado, e assim alcançar um direito a submissão desse. Hegel vê a razão como fundamento último de todas as coisas, sacraliza o Todo e a vida em nome da razão superior, para assim poder encontrar o repouso final e a felicidade. A crítica aos descendentes hegelianos é o fato de avaliar as opiniões e os atos passados pelas opiniões correntes do momento presente, onde eles de resto encontram o cânone de todas as verdades; o seu trabalho consiste em adaptar o passado na conjuntura atual.

 

O resumo do pensamento de Nietzsche sobre o ensino de história está em cinco razões principais: Ele produz uma oposição entre interioridade e exterioridade, levando ao enfraquecimento da personalidade; uma época é induzida a pensar que possui a virtude mais rara, a justiça verdadeira, num grau mais elevado do que qualquer outra época o fez; ele perturba os instintos do povo e impossibilita o amadurecimento do indivíduo e da comunidade; implanta também uma crença nociva na velhice da humanidade, a crença  pela qual ele própria é um epígono tardio; leva também uma época a adotar a perigosa atitude de ironia a respeito de si mesma e, em seguida, uma atitude ainda mais perigosa, o cinismo: com esta atitude, ela evolui cada vez mais na direção de uma habilidade prática que serve a fins egoístas, através da qual todas as forças vitais ficam paralisadas e finalmente são destruídas.

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

NIETZSCHE, Friedrich: Escritos sobre Educação(Tradução de Noéli Correia de Melo sobrinho);

Rio de Janeiro- São Paulo: Editoras Loyola e Editora PUC-RIO, 2003.

 


[1] Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), sua obra mais famosa Fenomenologia do Espírito (1807), diz sobre as etapas da consciência que apreende o mundo e encontra a si mesmo, para chegar finalmente à totalidade e ao absoluto.

[2] Karl Robert Eduard von Hartmann (1842-1906). É alvo das críticas de Nietzsche a obra Filosofia do Inconsciente (1869).

[3] O sentido de eternidade para Nietzsche não é a da eternidade imóvel, estanque, como um repouso final. Ao contrário é ele o próprio jorro do tempo, que muda e não para de se fazer diferentemente.