Dos crimes contra a dignidade sexual em menores

Dos crimes contra a dignidade sexual em menores

DOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL EM MENORES

 

Fabiana Juvêncio Aguiar Donato

 

A história dos crimes sexuais é a história da secularização dos costumes e práticas sexuais (ALI, 2011). E, é também uma parte significativa da repressão ao corpo e prazer, sobretudo repressão ao corpo e prazer femininos. Não é por acaso que até recentemente a doutrina entendia que mulher casada não podia ser vítima de estupro praticado pelo marido; que o casamento com o estuprador ou terceiro extinguia a punibilidade; que só a mulher honesta era passível de proteção por determinados tipos; que o homem podia ferir ou matar a mulher em legítima defesa da honra, em virtude de adultério etc.

Os crimes sexuais devem, por conseguinte, prestar-se a dois objetivos primordiais: proteger a liberdade individual de autodeterminar-se sexualmente e assegurar, contra abusos de terceiro, as condições necessárias ao desenvolvimento sexual pleno e saudável de crianças, adolescentes e incapazes em geral (CONDE, 2011).

Com o intuito de proteção ao vitimado a Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009 alterou a nomenclatura do Título VI do Código Penal, procedendo à substituição do termo “crimes contra os costumes” por “crimes contra a dignidade sexual”, buscando adaptar a legislação penal as novas tendências oriundas do desenvolvimento das relações interpessoais e ao próprio regramento constitucional. A nova denominação dirigida à prática de crimes de natureza sexual desprezou os costumes, muito embora eles estejam englobados pelo conceito de dignidade que é amplo, no sentido de afastar a ideia de defesa de como as pessoas deveriam se comportar sexualmente na sociedade, até porque os costumes representavam uma visão antiquada dos hábitos de uma sociedade ultrapassada. O estupro mediante violência presumida é o crime praticado contra vítima que não possa oferecer resistência, em face do estado físico ou mental da vítima. Em decorrência da pouca idade, a presunção da insuficiência de discernimento ou inaptidão física é absoluta, cujo critério é estritamente biológico, ainda, segundo o mesmo autor.

O novo panorama do elenco de crimes inicia pela redefinição do estupro. O artigo 213 assim está redigido: Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. § 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 anos ou maior de 14 anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. § (2º Se da conduta resulta morte: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 20 vinte) anos.

 Aduz no Código Penal: Art. 217-A. Ter conjunção carnal o praticar outro ato libidinoso com pessoa menor de 14 (catorze) anos. Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. § 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência.

Jawsnicker cita que o estupro de vulnerável, no artigo 217-A,  incrimina as seguintes ações: (a) ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos, prevista no caput; e (b) ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, prevista no § 1º. Essas ações são punidas com reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. Como se vê, o estupro de vulnerável é o que antes o Código Penal tratava como violência presumida (artigo 224). O crime em questão admite duas formas qualificadas: se da conduta resulta lesão corporal grave, a pena é de 10 (dez) a 20 (vinte) anos de reclusão (§ 3º); se resulta morte, a pena é de 12 (doze) a 30 (trinta) anos de reclusão (§ 4º) ainda segundo o mesmo autor. O referido artigo consta:

Art. 217-A. Ter conjunção carnal o praticar outro ato libidinoso com pessoa menor de 14 (catorze) anos. Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. § 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência. § 2º (vetado). § 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos. § 4º Se da conduta resulta morte: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. No entender de Nucci, a vulnerabilidade contida no artigo 217- A:

 

“trata-se da capacidade de compreensão e aquiescência no tocante ao ato sexual. Por isso, continua, na essência, existindo a presunção de que determinadas pessoas não têm a referida capacidade para consentir.”

 

Para Costa (2010) a liberdade é um poder de autodeterminação, em razão do qual a pessoa humana escolhe por si própria seu comportamento pessoal. A liberdade sexual, entendida como uma de suas mais importantes expressões, referida ao exercício da sua própria sexualidade, se constitui no direito de exercê-la em liberdade. A conduta sexual entre adultos é garantida desde que realizada entre adultos com pleno consentimento e sua realização ocorra no âmbito privado.

 “Pessoas vulneráveis”

A Lei 12.015/09 promoveu uma grande alteração no regramento dado à ação penal nos crimes sexuais com a nova redação do artigo 225CP. São “pessoas vulneráveis”:

a.       Os menores de 14 anos;

b.      Aqueles que por enfermidade ou deficiência mental não têm o necessário discernimento para a prática do ato sexual;

c.       Aqueles que, por qualquer outra causa (diversa da etária ou mental), não podem oferecer resistência.

Para Andrade, (2015) crimes contra a dignidade sexual antes da alteração legislativa, em tais delitos, em regra, de iniciativa privada, com apenas quatro exceções:

·         Se o delito era praticado com abuso do poder familiar ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador (ação penal pública incondicionada);

·         Resultava-se, da violência empregada, lesão corporal grave ou morte (também ação penal pública incondicionada);

·          Se a ofendida ou seus pais não podiam custear as despesas de um processo penal sem privar-se dos recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família (ação penal pública condicionada à representação).

·         Se resultasse lesão corporal leve, aplicava-se o Enunciado 608 da súmula do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual, no crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada.

Para Bittencourt “a representação não exige qualquer formalidade, podendo ser manifestada mediante petição escrita ou oral. A única exigência legal é que constitua manifestação inequívoca do ofendido de promover a persecução penal.” (CÓDIGO PENAL, 2005).

Dessa maneira, a jurisprudência é pacífica: “O Boletim de Ocorrência assinado por delegado de polícia, é documento hábil e vale como representação, pois nele se têm consubstanciadas a vontade do titular da representação quanto à instauração do inquérito e providências em relação ao fato delituoso e seu autor.” (TJSP - REV. – REL. GOULART SOBRINHO - RT 557/315).

“É legítima a atuação do Ministério Público se na polícia a vítima, em companhia do marido, deu parte do estupro que sofrera, conforme o Boletim de Ocorrência, aliás, assinado pela vítima. Ademais, depois disso, o casal prestou declarações pormenorizadas sobre o estupro, em clara indicação de que representava para sua apuração e eventual punição.” (TACRIM - SP - REV. - REL. SOARES PINTO - JUTACRIM 73/36).

O sistema de garantias dos direitos da criança e do adolescente consiste em um conjunto de órgãos encarregados de assegurar a implementação das leis de proteção de crianças e adolescentes. Entre eles estão os conselhos tutelares, as delegacias especializadas em crimes contra a criança e o adolescente, o Ministério Público, as varas da infância e juventude, a Defensoria Pública e os centros de defesa. Ao notificarem os casos de abuso e acompanharem o desdobramento da denúncia, os educadores interagem com esse conjunto de instituições, o que certamente contribui para que esse sistema funcione e se fortaleça a rede de proteção da criança e do adolescente (BRASIL, 1990).

Para a adequada abordagem do adolescente, do ponto de vista ético, devem ser respeitados os princípios da privacidade e da confidencialidade e sigilo profissional. Dentro desses preceitos: adolescente tem direito à privacidade durante o atendimento, independentemente da sua idade.    Deverá, portanto, ser atendido sozinho se assim o desejar. Quando existe história de abuso sexual, outro profissional da equipe deverá ser introduzido na consulta para proteção do médico (BRASIL, 1990).

            Devem ser consideradas situações de exceção, como nos casos de deficiência intelectual (casos ou assuntos em que o profissional deve entender que o adolescente deficiente intelectual não é capaz de assumir sozinho), distúrbios psiquiátricos ou outras situações em que o adolescente apresente falta de capacidade crítica, nas quais não há possibilidade de atendimento sem a presença de um acompanhante (BRASIL, 1990). Privacidade não implica obrigatoriamente em confidencialidade, pois em determinadas situações o profissional precisa quebrar o sigilo (BRASIL, 1990).

Na Constituição Federal brasileira de 1988, no artigo 227, que assegura a priorização de intervenções destinadas à criança e ao adolescente e chama para a responsabilidade todas as instâncias de atendimento aos mesmos, com enfoque legal e com ênfase na cidadania e na justiça social, respeitando a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Nesse sentido, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, adotada pela ONU, em 1990, foi a “força propulsora” para que no Brasil neste mesmo ano, se aprovasse o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Esta Lei preconiza no artigo 124, alguns dos direitos fundamentais dos adolescentes privados de liberdade. Dentre eles, no entanto, não consta a visita de parceiros ou parceiras, tão pouco, a visita íntima. Contudo, deixa claro o caput desse dispositivo que, além desses direitos básicos outros devem ser garantidos. Preconiza o referido artigo que, “são direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros” (ECA, 1990).

Portanto, os crimes sexuais são poucos denunciados e há falta de instrumentos adequados para registrar estatisticamente o problema, dificultando a produção de um diagnostico nacional exato sobre a violência sexual no Brasil. O numero real de casos é muito superior ao volume notificado a policia e ao judiciário. Estudos do Departamento de Medicina Legal da Unicamp, de 1997, indicam que apenas 10% e 20% das vitimas denunciam o abuso. No entanto, 43% das crianças e adolescentes pesquisadas pela Fundação Perseu Abramo em 2001, em todo o território nacional, relatam que já sofreram alguma forma de violência sexual e domestica, sendo 13% relatam ter sofrido abuso e 11% afirmaram já ter sofrido assedio sexual. (DREZETT, 2000).

Percebe-se que a invisibilidade das questões de violência sexual nos atendimentos também esta relacionada às dificuldades no trato das temáticas da sexualidade. No atendimento a mulheres e crianças, os profissionais de saúde procuram sempre transferir o problema para outros serviços, como o judiciário, o setor de segurança publica ou o serviço social da instituição. Não são capacitados para tratar das questões da violência, havendo grande ausência sobre este tema nos currículos dos cursos superiores dos pais (LERNER, 2000).

Com relação ao numero de agressores enquanto participantes efetivos do crime sexual prevaleceram um único, 12 vezes mais freqüentes os agressores múltiplos. Entre as crianças, o local mais comum da agressão foi na sua residência, seguido do domicilio do agressor e próximo a sua habitação. Entre as adolescentes a abordagem se deu mais quase sempre próximo a sua casa e no percurso da escola ou trabalho (DREZETT, 2000).

A violência e as atitudes que apóiam tal violência começam na adolescência, o que confirma a necessidade de que se engajem os homens jovens nestes temas. O índice dos que admitem a violência sexual propriamente dita é muito baixo, considerando-se o contexto da violência de gênero nas relações conjugais (ACOSTA; BARKER, 2003). 

O adulto que comete violência sexual sempre pede para a criança guardar segredo sobre o que aconteceu usando diversas formas de pressão. É muito comum a criança se sentir culpada e até merecedora da violência em si, haja vista ela não tem estrutura mental suficiente para explicar tal ato cometido contra si. Aliado ao sentimento de culpa, a pressão psicológica exercida pelo perpetrador, o próprio laço de afeição entre estes (BALLONE, 2004).

Em longo prazo, as vitimas geralmente apresentam dificuldades de aprendizagem. Ballone (2004) cita alguns efeitos do abuso sexual sofrido por crianças. Entre eles estão os atrasos de linguagem, déficit cognitivo, agressividade, rejeição por parte de outros grupos, abuso de álcool, drogas e, ate mesmo, com tendência a tornarem-se delinquentes quando adultos.

Em suma: entretanto, observa-se a importância e a necessidade de contextos adequados para que os adolescentes possam desenvolver o lado psicoemocional e social adaptando-se e superando todas as divergências perpassadas pela vida. Busca-se por modificações estruturais na segurança policial e judiciária com o intuito de contribuir com o procedimento dos fatos a partir da notificação e da perícia médico-legal.