Dália, MULHER E CEGA: Narrativas de uma História de Vida

Dália, MULHER E CEGA: Narrativas de uma História de Vida

Dália, Mulher e Cega: Narrativas de uma História de Vida

 

Daniela Leal

 

Na perspectiva vigotskiana, é através da linguagem, instrumento fundamental no processo de relações sociais, que o homem se individualiza, se humaniza, aprende e materializa o mundo das significações que é construído no processo social e histórico. É a partir da palavra, do signo, segundo Aguiar (2007) que se poderá apreender os aspectos cognitivos/afetivos/volitivos constitutivos da subjetividade.

Sendo assim, busca-se aqui neste artigo descrever o caminhar da pesquisadora diante do desafio de captar, compreender e registrar o universo da narradora/entrevistada por intermédio da história oral, mais especificamente pelo método de história de vida, para tentar compreender como se deu a constituição da identidade de uma jovem mulher que foi perdendo a sua visão ao longo de sua trajetória de vida, desde o nascimento até aproximadamente seus 42 anos de idade, principalmente diante dos processos de exclusão, segregação, integração e inclusão escolar, vivenciados socialmente em cada etapa da história da educação da pessoa com algum tipo de deficiência.

No que se refere especificamente ao método de história de vida, parte-se do pressuposto de que este “propicia uma aproximação maior com o sujeito ou grupo analisado, já que privilegia as apreciações das experiências de interesse interpretadas pelos próprios participantes” (Glat et al, 2004, p. 236), além de distinguir-se de outras formas de investigação, primeiro, porque se utiliza de uma entrevista aberta, sem um roteiro pré-determinado e com o mínimo de interrupções possíveis e, segundo, porque ao se apropriar de uma escuta respeitosa tentar-se-á apreender as especificidades do mundo pessoal e, assim, verificar o sentido que o sujeito atribui ao conteúdo narrado.

Esse momento não é considerado apenas como uma situação de coleta de dados, mas uma oportunidade, para entrevistador/pesquisador e narrador/entrevistado, de questionamento e reflexão (Glet et al, 2004; Queiroz, 1988; Silva et al, 2007), pois “ao relatar a sua vida, o sujeito está, concomitantemente, compartilhando com o pesquisador uma análise prospectiva e avaliativa” (Glat et al, 2004, p. 237) de sua própria história de vida.

Ao iniciar o processo com base em uma entrevista aberta, como é o caso da história de vida, para que o sujeito comece a relatar sua experiência de vida, faz-se necessário observar três critérios: 1º) disponibilidade de tempo tanto para realizar as entrevistas, quanto para transcrevê-las, pois ao se fazer uma pergunta genérica (conte-me sobre sua história de vida) ou uma pergunta-chave (conte-me sobre sua história de vida, focando-se em suas relações escolares), o sujeito narrará à sua maneira como ele se encontrava na situação que vivenciou ou de acordo com a sensibilidade vivida; 2º) questionar-se sobre o que manter e o que cortar da fala do outro e, 3º) assegurar ao narrador/entrevistado o direito de ouvir a gravação ou ler a transcrição para que faça acréscimos ou subtrações, caso seja de sua vontade.

Para tanto, a escolha do narrador/entrevistado é guiada, primeiramente, pelos objetivos da pesquisa (revelar como seu deu a constituição da identidade de Dália a partir de suas relações escolares, focando-se na questão da inclusão escolar) e, principalmente, pela posição do narrador/entrevistado na pesquisa, consequentemente o significado de sua experiência pessoal com relação ao tema pesquisado (Dália vivenciou na educação os períodos de exclusão, segregação, integração e inclusão).

No caso desta pesquisa, a escolha da narradora/entrevistada se deu durante as aulas ministradas pela pesquisadora, em um curso de Pós-graduação lato sensu, no qual Dália era uma das alunas, cega, em sua luta para concretizar o sonho de terminar a especialização para poder contribuir ainda mais com seus alunos (com deficiência visual, mas acometidos por mais de um transtorno/distúrbio do desenvolvimento ou da aprendizagem), e com uma vida permeada de emoções, afetos, sentimentos, metamorfoses e mesmices.

Durante as aulas, principalmente diante dos desafios de se adaptar um curso clínico para uma pessoa cega, Dália esteve sempre disposta a contribuir com as discussões trazendo passagens de sua história de vida sobre as adaptações necessárias (recursos, instrumentos, etc.) para que pudesse dar continuidade aos seus estudos, bem como os desafios enfrentados na instituição a qual trabalhava e que a motivavam a querer concluir a pós-graduação e ajudar seus alunos. Diante de tantos relatos, acreditou-se que não se poderia deixar de lado a história de vida de uma pessoa que, apesar de vivenciar todas as experiências de um aluno com deficiência (exclusão, segregação, integração e inclusão), continuou sempre a buscar pela concretização de seus sonhos: formar-se, trabalhar, ter uma profissão e lutar pelos direitos daqueles que se encontram com algum tipo de deficiência ou dificuldade no processo de escolarização.

Evidenciando, assim, o segundo fator a ser observado quando se opta por uma pesquisa envolvendo história de vida: a predisposição do narrador/entrevistado para falar sobre o passado, pois não são todos os sujeitos escolhidos que se interessam por explorar extensivamente sua experiência de vida e discorrer sobre o passado (Alberti, 2004).

Neste caso, Dália se entregou por completo, oferendo não somente o tema a qual a pesquisa exigia, mas uma ampla história de sua vida, envolvendo os aspectos sócio-afetivos, profissionais, educacionais, entre outros, em pouco mais de cinquenta páginas de transcrição. Revelando-se Dália uma boa narradora/entrevistada ao apresentar uma “percepção aguda de sua própria experiência” (Alberti, 2004, p. 34). Ou seja, Dália ofereceu mais do que o simples relato de acontecimentos. Ela revelou impressões de épocas vividas, de comportamentos de pessoas ou grupos, bem como, no campo mais abstrato, os dogmas e conflitos vividos pessoal e socialmente, entre outras tantas questões.

 

Dália: ela por ela mesma

 

Dália, uma jovem senhora, com seus 42 anos, à época da pesquisa (2007/2008), demonstrou em seu discurso ser uma lutadora e otimista frente às situações que a vida foi lhe impondo, principalmente ao buscar constante aperfeiçoamento para sua vida profissional, mas principalmente ao lidar com a perda total da visão aos 36 anos de idade, em decorrência da retinose pigmentar – doença esta degenerativa que a acometeu desde o nascimento.

Dália nunca perdeu a esperança pela vida ou sentiu-se coitada por causa da dificuldade de enxergar. Pelo contrário, na maior parte do tempo, conseguia retirar de todas as experiências vivenciadas, fossem essas negativas ou positivas, um ensinamento e/ou aprendizado para seu crescimento pessoal.

Tal síntese sobre as múltiplas determinações, sobre as contradições da vida de Dália que revelaram seus movimentos, só foram possíveis de serem observadas quando lançou-se mão do “óculos” propostos inicialmente (olhar a história de vida com base no processo de escolarização), para abraçar a “lente de aumento, a lupa” que proporcionou apreender todo o seu discurso através de uma trama de sentimentos, emoções, sentidos, significados na construção de sua própria história de vida. Para tanto, parte-se desde o dia do nascimento de Dália: “... lembro-me dos meu pais contando... foi bem complicado... Nasci antes da hora, meu pai não estava em casa. Nasci em casa mesmo. Não deu tempo de levar para o hospital. Quase morro. Qualificando-a, assim, desde o nascimento como lutadora: lutou para nascer, consequentemente para sobreviver. “Acho que foi meu espírito. Ele era tão forte, que lutei para ficar! Nasci de oito meses... Naquela época era raro a criança que nascia de oito meses e vingava, como eles diziam.

Mostrando, como descreve Ciampa (2001), que Dália ao apresentar-se, assim como Severina, personagem de sua obra, parte do lugar de onde provém, de suas condições de vida, de seus pais, em vez de começar por seu nome. “Um nome [que, segundo Ciampa,] nos identifica e nós com ele nos identificamos... que confirma e autentica nossa identidade” (p. 131). Por isso, a importância de apresentá-lo antes de qualquer outra descrição.

Dália continuou sua descrição informando que sua infância foi muito difícil, pois sua família tinha uma situação financeira delicada.

Era uma casa alugada de dois cômodos... Se conseguíamos ter alguma coisa dentro de casa, era quando a minha mãe fazia algum bico... Ou, antes de voltar para casa, passávamos na casa da minha prima para comer, pois não tínhamos o que comer dentro de casa, na grande maioria das vezes...

Fala que revela que, embora o modelo nuclear de família tivesse posto e imposto, “as vicitudes da vida [, no século XX,] obrigaram as pessoas a moldarem-se às circunstâncias, no que diz respeito à organização e à estrutura familiar [– homem como provedor e mulher como cuidadora e responsável pela família e filhos]” (p. 18). Não diferente, a família de Dália passou por mudanças significativas que provocaram alterações na ordem familiar tradicional.

Quando mudamos de casa, minha mãe foi questionar algumas coisas com meu pai. Afinal, tinha mês que ele tinha dinheiro, tinha mês que não tinha... Meu pai tinha uma marcenaria em casa, e ele gostava de ficar no bate papo, principalmente se aparecesse alguma vizinha. Ele conversava muito!

Condições essas que, consequentemente, obrigaram a mãe de Dália a tomar uma posição frente à situação vivenciada por ela e seus filhos, para que conseguissem sobreviver: “Lembro-me que eles tiveram uma briga muito feia e ele chamou a minha mãe de parasita... Isto não era uma constante... ele a chamou de parasita e meteu a mão na cara dela...”. A mãe de Dália assumiu a nova realidade familiar e saiu em busca de um novo emprego, para manter o sustento de casa, sua dignidade enquanto mulher e a dignidade de seus filhos. “No mesmo dia ela tomou banho, vestiu uma roupa e saiu. Quando voltou, já voltou empregada”.

Diante da nova realidade, da negociação de papéis que passaram a ser impostos, Dália se viu frente a responsabilidade de atender às expectativas de sua mãe, principalmente mediante sua condição, baixa visão, de dependência para dar continuidade aos seus estudos e locomover-se à escola: “Em função do horário de trabalho da minha mãe, eu tinha que ficar com o meu irmão mais velho, pois dependia dele para ir à escola”.

Dália relatou que durante a infância, principalmente nesse período, em decorrência da preocupação dispensada para com ela por parte de sua mãe, seu irmão mais velho a via como sendo o “dodói” da mamãe. Entretanto, contrariando a fala do irmão, Dália o via como sendo o preferido, por ser o mais velho e o homem da casa: “Ele é que era o preferido da mamãe! Ele era o mais velho e era homem!”. De acordo com Regen ([----]), tal pensamento de Dália pauta-se, provavelmente, nas antigas tradições implementadas no Brasil Colônia, onde os pais apenas se interessavam pelos primogênitos; pelos filhos homens em detrimento das meninas.

Apesar dos pensamentos de Dália em relação a preferência da mãe pelo irmão, ou mesmo sob às dificuldades enfrentadas econômica e emocionalmente, a mãe de Dália sempre a incentivou a dar continuidade aos seus estudos, a lutar por seus ideais, mesmo que por caminhos tortuosos, mas sempre em busca de seus objetivos e realizações. Tornando-se a mãe uma referência constante na vida de Dália: “A vida da minha mãe foi bastante sofrida... Mas vou falar para você: eu nunca vi minha mãe sentada em algum canto lamentando-se da vida... Para ela não tinha tempo ruim...”.

Apesar de todas as adversidades enfrentadas, a mãe de Dália sempre lutou por uma vida digna e com o mínimo necessário para que seus filhos vivessem, sobrevivessem e aprendessem a caminhar com segurança em busca de seus ideais. No caso específico de Dália, a mãe serviu sempre como fonte de aprendizado e força motriz para que pudesse caminhar nas descobertas das habilidades essenciais para administrar o espaço a sua volta, consequentemente suas ações sobre o mundo, independente das dificuldades que a baixa visão lhe causava: “Minha mãe tinha o discernimento das coisas. Minha mãe nunca chegou em mim para dizer: ‘Você não pode...’. Pelo contrário, ‘Você tem que aprender a fazer as coisas; tem que se prevenir; tem que se cuidar..., mas tem que fazer’”. Mostrando, assim, um

... ambiente familiar propício para oferecer inúmeras atividades que envolvam a criança numa ação intencional, numa situação de trocas intersubjetivas que vão se tornando mais complexas... com a finalidade de preparar seu filho para a sociedade em que vive. [Ou seja, transmitir], uma herança cultural que possibilita a inserção da criança no mundo social mais amplo, para torná-la apta a atuar nele, considerando sua realidade social e histórica. (Szymanski, 2000, p. 19)

Independente das barreiras que encontrava, a mãe de Dália sempre a apoiou para que pudesse dar continuidade ao seu crescimento pessoal e cultural, assim como exercer o seu direito de escolha. Direito de escolha que, na fala de Szymanski (2000), “é um dos maiores legados que os pais oferecem aos filhos” (p. 21). Notando-se, assim, que apesar da mãe de Dália ter sido criada nos moldes das mulheres dos anos de 1950, quando ser mãe, esposa e dona de casa era destino natural das mulheres (Bassanezi, 2007), tanto a mãe de Dália quanto outras mulheres a sua época, saíram de casa para trabalhar, manter o sustento da casa e, ainda, cuidar dos filhos.

Pode-se dizer, portanto, que a mãe de Dália, desde o carinho colocado na comida – “A forma de que tinha de demonstrar o amor que sentia por nós, era na comida” –, a forma ríspida, mas justa de ensinar o que era certo e o que era errado, até o momento de sua despedida, foi o apoio, o exemplo, a muralha que ensinou Dália a perceber a complexidade e a diversidade das experiências e das realizações vivenciadas durante cerca de três décadas presentes em sua vida. Tanto que quando da morte física de sua mãe, Dália sofreu muito com a morte simbólica de um de seus personagens: a filha. O que lhe causou grande sofrimento e, até mesmo, o desejo de querer morrer, de deixar de viver seus outros personagens: “Eu sonhava muito com a minha mãe logo que ela morreu. Era a presença viva dela comigo... Entrei em uma depressão muito... Eu queria morrer, também! Queria ir embora”.

Nesse momento, dizer para Dália não ficar triste seria, como descreve Kübler-Ross (1998), contraproducente. Afinal,

... todos nós ficamos profundamente tristes quando perdemos um ser amado... Se deixarmos que exteriorize seu pesar, aceitará mais facilmente a situação e ficará agradecido aos que puderem estar com ele neste estado de depressão sem repetir constantemente que não fique triste (pp. 93-94).

Apesar de tanto sofrimento, de tanta angústia e, principalmente, do desejo de deixar de existir, eis que a mãe surge mais uma vez para ajudar Dália, mesmo que em sonho:

“‘Vamos, vamos!’ - mãe. ‘Você vai me levar?’ – Dália. ‘Vou! Você não quer ir embora comigo? Então, vamos!’ – mãe. ‘Espera! Eu vou acordar a Kamila’ – Dália. ‘Não! Você tem que escolher. Ela não pode vir. É só você! Ou você vem comigo ou você fica com ela’ – mãe. E, aí, eu fiquei. Optei por ficar com a minha filha. Levantei a cabeça... Afinal, tinha uma filha de 10 anos e mais ninguém”.

Pode-se dizer que, Dália saiu do estado de moribunda e retornou à vida, revelando a verdadeira metamorfose. Nas palavras de Ciampa (2001), o termo vida-e-morte é o que melhor revela a constituição da identidade e suas verdadeiras transformações, assim Dália deixou morrer a personagem da moribunda para nascer uma nova personagem que a levou a prosseguir seu caminho e dar continuidade a sua vida.

 

O caminhar da deficiência visual: da descoberta à cegueira total

 

Dália fez um resgate de sua trajetória, apresentando todos os momentos que marcaram sua vida como pessoa com deficiência visual e posteriormente como cega. Salientando aqui que, segundo a própria Dália, a baixa visão nunca fora motivo para sua desistência, pelo contrário, foi motivo de incentivo para continuar a seguir seus objetivos, bem como para criar e sinalizar recursos para que pudesse seguir em frente, sem desistir, tanto nos estudos quanto na vida pessoal e profissional: “Para mim era normal. Eu via pouco! Mas como eu ia saber como era a visão normal?... Não tinha noção... Como eu tropeçava muito, minha mãe achava que era por conta de eu ser muito distraída ou outra coisa assim”.

Fala que revela dois pontos fundamentais: primeiro, que os sinais da retinose pigmentar, muitas vezes, passam desapercebidos pelos pais. Segundo que, somente com a entrada na escola os indícios e/ou primeiros sinais da retinose pigmentar são observados com maior ênfase, permitindo que fosse investigado o que de fato estava ocorrendo: “Fui encaminhada para o oftalmologista, que receitou os óculos, pago pela APM [Associação de Pais e Mestres] da escola”. Muitas vezes, a escola é o locus onde se descobrem vários tipos de deficiência que acometem crianças, jovens e, em alguns casos, adultos.

... a escolarização exige várias habilidades e, principalmente, a visão, a palavra e o pensamento. Quando da falta de algum desses elementos, a escola às vezes passa a investigar o que está acometendo o aluno, para que se possa encaminhá-lo e ter suporte para um melhor aprendizado. (Leal, 2008, p. 82).

No caso de Dália, foi exatamente assim que descobriram que ela tinha retinose pigmentar e proporcionaram-lhe encaminhamento e tratamento: “Lembro-me que ia ao consultório fazer acompanhamento, tratamento”. Tudo o que poderia ter sido oferecido à Dália como forma de prevenção e/ou tratamento para retardar a perda da visão, naquele momento, lhe fora oferecido e, apesar de notar que Dália não queria aceitar a perda da visão que se daria gradativamente, a mesma sempre, de uma forma ou de outra, estava se preparando para o que de fato ela não poderia fugir: a perda total da visão.

Eu tinha que ficar de frente para a escrita. Se ali eu já não conseguia ver, então, tinha que ir mudando de carteira. Naquela época, fico pensando hoje, eu não sabia o que era bengala, mas eu já precisava dela! Eu vinha rastreando a guia com o pé; eu me direcionava assim... Porque à noite, à noite eu era cega! À noite só via quando batia a claridade; portanto, descia pelo canto da guia.

Eu não conseguia ter noção que ia perder a visão e que, na verdade, eu já estava perdendo...

Diante dessa fala, verifica-se de forma expressiva a concepção de Vygotski (1997) ao se referir ao processo de desenvolvimento da criança, pois segundo ele, é durante o processo de desenvolvimento que a criança se equipa e reequipa das mais diversas ferramentas, não somente para um maior desenvolvimento de suas funções mas, também, pelo modo que domina a atividade de suas próprias funções psicológicas. Por exemplo, a memória de uma pessoa com deficiência se diferencia da memória de uma criança normal, não somente por ser mais desenvolvida, mas sim por memorizar de uma forma distinta e com outros procedimentos, consequentemente utilizando-a em um grau diferente.

Quando pensa-se sobre o processo de construção da identidade de Dália, principalmente em seus conflitos com a aceitação da perda da visão, depara-se com o que Ciampa (2001) denomina de fetichismo da personagem. Ou seja, Dália mantém-se sempre na personagem não sou cega, nem enxergo; pois ao mesmo tempo que pede a Deus para perder o pouco que tem, arrepende-se e inventa desculpas para justificar a perda gradativa da visão: “... quando admiti, quando aceitei enxergar só um pouco... descobri que ia ficar cega. Foi difícil! Pedi perdão para Deus: ‘Ah, Senhor! Você tinha que me escutar justamente nisso? Eu pedia tanto para ser totalmente cega em vez de ter enxergado uma vez e, agora, eu tinha que ser totalmente cega?’.

Tal condição explica “a quase impossibilidade de ser-para-si e vai ocultar a verdadeira natureza da identidade como metamorfose, gerando o que será chamado de identidade mito” (Ciampa, 2001, p. 40). Ou seja, apesar de mostrar a todo tempo as personagens lutadora e otimista, ao deparar-se com as mudanças que sofre Dália fica sob o domínio da personagem não sou cega, nem enxergo; consequentemente, uma transformação efetiva, um salto qualitativo não se dá e suas contradições não se resolvem como superação e são re-postas em um círculo infindável (Ciampa, 2001).

Eu estava perdendo mais ainda a visão, no entanto, sempre tinha uma desculpa: “É porque estou estudando à noite, que não consigo mais ver. Ah! É porque a lâmpada não está batendo direito”. Eu sempre encontrava mecanismos para justificar a falta de não estar enxergando como antes. Não conseguia aceitar que estava perdendo!

Tal afirmação, coaduna com a fala de Vygotski (1997) quando demonstra as metamorfoses que a criança passa desde o engatinhar até o marchar, bem como do balbuciar à linguagem propriamente dita. Em ambos os casos há uma transformação qualitativa em outra. Para aceitar a condição de quem enxerga pouco para quem ficará cega, Dália teve que compreender que essa transformação qualitativa deu-se aos poucos e gradativamente. Somente muito tempo depois, com a descoberta do diagnóstico correto – retinose pigmentar –, é que Dália indagou-se sobre as diversas curiosidades que possuía sobre sua condição: “Como será que é enxergar diferente? Como é enxergar normal? Porque eu via, conseguia ler coisas, então, ficava pensando: ‘Como será que é?’”.

Mostrando que apesar de fazer acompanhamento constante com oftalmologista, desde os 6 anos de idade, Dália sempre colocou que não sabia que um dia perderia totalmente a visão. Achava que sempre permaneceria na condição de não sou cega, nem enxergo. Ou, como descreve Kübler-Ross (1998), a morte, no caso de Dália a perda, é geralmente inconcebível para os sujeitos. A morte em si ou a perda estão ligados a uma ação má, a um acontecimento medonho. Fato esse percebido na própria fala de Dália quando se questionou e culpou-se por, em um momento de raiva, ter pedido para perder o pouco de visão que tinha e, ao saber que de fato perderia, gostaria de voltar no tempo e mudar seu pedido: “Quando aceito enxergar só um pouquinho, descubro que vou perder esse pouquinho. Eu não quero mais ser cega! Aí, eu fui conversar com Deus, mas o pedido já estava feito... ‘Meu Deus do Céu, o Senhor não pode voltar atrás no meu pedido?!’.

A negação, segundo Kübler-Ross (1998), aparece como um dos primeiros estágios para a aceitação da morte e/ou da perda, sendo logo substituída por uma aceitação parcial, alimentada pela raiva, pela revolta, que leva o sujeito a um próximo estágio, o de barganha. Este estágio nada mais é que uma tentativa de adiamento do inevitável e “a maioria das barganhas são feitas com Deus, são mantidas geralmente em segredo” (p. 55), o que fica claro nos pedidos de Dália ao querer voltar atrás.

Tal sofrimento somente ganha outra forma, quando a pessoa consegue encarar ou aceitar a realidade de sua própria morte e/ou perda, alcançando, assim, a paz interior: “[...] todos nós sentimos necessidade de fugir a essa situação; contudo, cada um de nós, mais cedo ou mais tarde, deverá encará-la” (Kübler-Ross, 1998, p. 22). “Foi, então, que fui fazer reabilitação. Conversávamos de igual para igual; trocávamos muitas ideias com eles”.

Quando da perda, de fato, da visão, apesar das diversas conversas com a terapeuta ocupacional, o choque, o sentimento de tristeza e de perda foram intensos. Ao se acostumar a ver pelo menos um pouco, Dália encontrou dificuldades para aceitar que não veria nunca mais. Posteriormente a perda, Dália admitiu que depois que a visão se foi por completo e sua adaptação aos espaços a sua volta se deu, tudo tornou-se mais fácil e sereno.

Começaram os flashes... Tudo ficou escuro. Esses flashes pareciam flashes de máquina fotográfica. Iam e voltavam, iam e voltavam. Fui correndo para o médico! Ao chegar lá, ele cismou que era enxaqueca. E não era! Passei a noite inteira com o olho doendo. Pela manhã, fui novamente ao hospital, só que passei com outro plantonista. “Eu não estou vendo mais nada! Eu vou voltar a ver o que via?! Pelo menos a claridade?!”. O médico saiu de perto... Então, eu já sabia que não ia enxergar novamente.

Morre aqui a personagem nem sou cega, nem enxergo para dar lugar a uma nova vida, a uma nova personagem: Dália, mulher e cega. Ou, como diria Kübler-Ross (1998), depois de ter passado pelos quatro estágios – negação, raiva, barganha e depressão –, Dália, após a perda total da visão, conseguiu atingir o quinto e último estágio: a aceitação. Neste momento, se a pessoa recebeu ajuda para superar todos os estágios anteriores, não mais sentirá depressão nem raiva; o que não quer dizer que a aceitação seja felicidade. A aceitação, na verdade, vem para mostrar que a morte e/ou a perda não é uma coisa horrível, medonha como se pensava, mas sim um novo estágio da vida.

Chegado aqui, cabe lembrar que a vida de Dália não foi rodeada somente de seus relacionamentos familiares ou de suas dúvidas e/ou aceitação à cegueira, esta última que permeará toda a sua trajetória de vida e seus relacionamentos, mas também pelas relações que foram sendo estabelecidas com o social, principalmente por intermédio de suas experiências escolares e profissionais.

 

Do ensino fundamental à especialização: a trajetória de uma vida escolar e profissional cercada pela deficiência

 

Ao longo de sua educação primária, hoje ensino fundamental, Dália passou por várias situações positivas e negativas, as quais influenciaram significativamente em sua constituição identitária, principalmente se pensar na construção da personagem lutadora e otimista.

Durante o Ensino Fundamental e Médio Dália teve professores que a marcaram significativamente, tanto por lhe acolherem – dedicar-se-á a esses na descrição do último subtítulo – quanto por verem sua deficiência com indiferença e, muitas vezes, cercados de pré-conceitos que causaram marcas profundas, na forma de ser e de se relacionar com o mundo, em Dália. Principalmente porque, mediante os acontecimentos de sua vida, as relações com as demais pessoas a sua volta foram se fazendo restritas e rodeadas de desconfiança e insegurança, pois não queria que as pessoas se aproximassem para, como ela própria relata, “tirar um barato da minha cara”.

Desconfiança pautada nas atitudes dos colegas de quintal – “Eu estava ali fazendo a minha lição, estudando. Vinham as crianças do mesmo quintal e falavam: ‘A ceguinha! A cabra cega!’. Isso ia me irritando...” –, e não nos verdadeiros sentimentos e laços afetivos que o outro buscava lhe oferecer – “Lembro-me que tinha uma menina que aonde eu ia, ela queria ficar perto de mim. Mas eu não deixava! Ela era a única que se aproximava de mim...”.

Nas palavras de Vygotski (1997), o meio social é uma das principais barreiras que dificultam a construção de um novo caminho para a reestruturação da pessoa com deficiência. E, ao tentar despir a criança da deficiência que carrega, ainda povoam no imaginário de muitas pessoas conceitos estigmatizados sobre a pessoa cega (Almeida, 2005).

Com relação aos professores, quando esses agiram com atitudes e pré-conceitos postos e impostos, muitas barreiras foram levantadas para que Dália pudesse vencê-las. Barreiras que, muitas vezes, levaram-na ao descrédito de si mesma, bem como ao medo e à insegurança de se expressar em sala de aula, ou mesmo ao falar para a professora da primeira série sobre as suas dificuldades para enxergar. “Quando a professora me chamava, nas primeiras vezes, era normal falar: “Eu não fiz porque não enxergo”. Entretanto, até mesmo por não saber o que estava ocorrendo com Dália, ou mesmo por não investigar o que ocorria com seus alunos, acreditava ser mais fácil utilizar dos antigos padrões e jargões educacionais: “A professora dizia que eu não fazia porque não queria, porque era preguiçosa e estava mentindo”. Consequentemente, “Depois de algum tempo, comecei a me sentir mal com isso. Tal situação começou a me agredir, pois não conseguia fazer com que entendesse que, realmente, eu não estava vendo”.

Revelando, dessa forma, como bem pontua Vygotski (1997), que a cultura está acomodada e adaptada a constituição da pessoa normal, e quando depara-se com uma pessoa com um desenvolvimento atípico, acometido por uma deficiência, perturba o curso normal do desenvolvimento da criança na cultura, dificultando assim sua adaptação ao meio em que vive. Ou, ainda, como afirma Barros (2006), é a qualidade da mediação o fator primordial no processo ensino-aprendizagem, que irá direcionar o aluno ao fracasso ou à facilitação do processo de aprendizagem. E, no caso específico de Dália, as mediações que foram sendo estabelecidas relacionaram-se diretamente à qualidade das interações entre ela e os sujeitos a sua volta, bem como entre ela e os professores que a levaram, inicialmente, a sentimentos negativos, como no dia que se recusou a entrar na sala de aula (“Não entro! Não entro! Não entro!”) e, posteriormente, a sentimentos de superação ao atingir o que Ciampa (2001) descreve como ser-para-si (“Ela falou que sou mentirosa, e mentirosa eu não sou!... Se falei para ela que não enxergo, é porque não enxergo!”). Dália conseguiu, pela prática transformadora, modificar-se e modificar o mundo.

Apesar da transformação, a primeira professora do primeiro ano do ensino fundamental, não foi a única que marcou a vida escolar de Dália. Após dois anos sem estudar, devido a mudança de casa e município, a nova professora da terceira série do ensino fundamental, fez com que Dália se sentisse, mais uma vez, diferente de todos.

Sentia-me diferente na sala dessa professora! Ela olhava para mim diferente! Ela não sorria para mim! Ela era muito seca! Tinha um olhar penetrante que dizia: “O que esta menina está fazendo aqui? O que ela veio fazer aqui?”. Acho que o olhar dela era um olhar diferente e, por isso, comecei a me sentir diferente. Fiquei um bom período inibida quanto a isso... Você sabe que imagino até hoje o olhar dela? Incrível! Eu a vejo na minha frente.

Mostrando que, primeiro, a matrícula realizada, com muita dificuldade, esbarrou na velha falácia de que apenas matriculando já se está agindo de uma forma inclusiva, quando, na verdade, está segregando uma vez mais (Serra, 2006). Segundo que, apesar da deficiência visual não acarretar dificuldades cognitivas, emocionais e de adaptação social, a professora não conseguiu evitar seu olhar de dó, piedade ou rejeição para com Dália. Terceiro, que apesar da escola ser considerada como o primeiro local a lutar contra o sentimento de inferioridade, não permitindo que a criança se desenvolva através de formas mórbidas de compensação (Vygotski, 1997), “muitas vezes preocupa-se apenas com a simples inserção da criança com deficiência, deixando-a de lado, sem propiciar intervenções decisivas e incisivas para o seu processo de desenvolvimento” (Leal, 2008, p. 95). E, quarto, que as marcas deixadas pela professora da terceira séria, parecem feridas que, apesar de cicatrizadas, tornam-se presentes constantemente quando Dália tem que falar sobre o sentimento de inferioridade que, por muitas vezes, a levou ao choro e ao medo de falar com os professores.

A partir da quarta série do ensino fundamental até o final do ensino médio e, posteriormente, o ensino superior, por ter mais de um professor, Dália começou a notar as diferenças que existiam entre um e outro e, apesar de ainda apresentar resquícios das inseguranças adquiridas durante os primeiros anos de escolarização, Dália conseguiu indicar aos professores o que se fazia necessário para dar continuidade aos estudos, aprendendo cada vez mais e conseguindo concretizar seu objetivos. E mais, mesmo diante dos insultos e piadinhas de pessoas que apenas a viam como “a ceguinha” ou “a cabra cega”, Dália não se curvou. Com o passar do tempo, conseguiu acreditar em algumas pessoas, assim como acreditar que seria capaz de conquistar seus objetivos. Sua obstinação pelos estudos era a força que a fazia conseguir passar por todas as barreiras com que se deparava: “Cheguei até onde muita gente achava que não ia chegar. Mas estou aqui!”.

Com relação ao profissional, somente aos 30 anos de idade, que uma nova porta se abriu para Dália: a possibilidade de um emprego como serviçal, através de um concurso público, pois, até então, Dália carregava consigo um sentimento de angústia e até mesmo de revolta por nunca ter conseguido um emprego.

Em 1994 resolvi prestar um concurso da prefeitura, para o cargo de serviçal... Prestei o concurso e quando saiu o resultado... Passei!... Em janeiro de 1995, estava correndo atrás da documentação para começar a trabalhar. Para ser aprovada tive que disfarçar muito bem! Levei uma amiga para ir descrevendo o espaço para mim, para não dar nenhuma gafe.

Mostrando que o desejo de conseguir um emprego era maior do que a verdade que sempre defendia: “não mentir”. Ninguém percebeu sua baixa visão e Dália também não falou sobre ela até o dia que teve que assumir o cargo: “... quando descobriram, ou melhor, quando eu contei a verdade sobre a minha deficiência... comecei a trabalhar com deficientes... em um projeto do Conselho Municipal da Pessoa Deficiente”. Surgiu, nesse momento, a primeira oportunidade de realizar mais um de seus sonhos: cursar a faculdade.

Nesse período, apesar de Dália ter passado por várias transformações como pessoa, principalmente devido a morte da mãe, a perda total da visão e a aposentadoria repentina, nada fez com que ela desistisse da faculdade: “Eu não queria me aposentar! Eu queria utilizar o que estava aprendendo na faculdade...”. Apesar de sentir-se muito triste pelo fato de que com a aposentadoria não poderia exercer sua profissão – pedagoga –, Dália não desistiu e seguiu em frente: foi em busca de trabalho, dentro de sua área de formação, em ONG’s e instituições, onde ainda poderia exercer sua atividade e sentir-se capaz de ajudar o outro.

Quando me aposentaram, continuei trabalhando aqui no condomínio como síndica. Tinha uma senhora que estava no meu pé – essa que trabalho com ela... A filha dela também tinha retinose. Ela estava junto com o Gabriel – ex-namorado, mas que na época não o conhecia e que, coincidentemente, perdeu a visão na mesma época que eu –, e precisavam de ajuda, pois queiram muito montar uma associação... Então, resolvi fazer parte...

Entretanto, devido a vários problemas de ordem financeira e de relações pessoais, o Centro de Reabilitação e Integração Social não deu certo, e Dália voltou a dedicar-se, mais uma vez aos estudos: uma pós-graduação em Psicopedagogia, para melhorar sua atuação com seus alunos na nova ONG a qual dedicava suas horas de trabalho: “Meu trabalho é diferenciado com aqueles que foram excluídos daquele ambiente regular de ensino, vamos assim dizer. São aqueles que, apesar de terem tentado se inserir na sala de aula, não quiseram ou não conseguiram se adaptar”.

Por fim, Dália afirma que toda a sua formação, principalmente a Psicopedagogia, contribuíram significativamente para com seu trabalho de atendimento na instituição, assim como para uma análise mais ampla do que é trabalhar com a educação em todas as suas instâncias: “Não me arrependo nem um minuto de ter estudado e não falo nunca: ‘Ai, coitada de mim!’. Pelo contrário, só tenho que agradecer a Deus, que durante esse tempo todo sempre tive uma, duas ou três pessoas ao meu lado”. E, algumas dessas pessoas, conheceremos a partir de agora.

 

Professores que atuam na diversidade sem saber, mas que realmente fazem inclusão

 

A professora Isabel que, como descreve Dália, foi resgatá-la da primeira professora, a que não acreditava nela e a qual havia se recusado a entrar na sala de aula, foi a primeira a mostrar e a demonstrar interesse pelas dificuldades de Dália: “Quando ela ficou sabendo do que aconteceu, foi atrás da minha mãe. Ela foi até lá, conversou com a minha mãe, arrumou uma vaga para mim na sala dela”. Além de conseguir uma vaga na escola onde lecionava, mais especificamente em sua sala de aula, a professora Isabel buscou meios para fazer o encaminhamento ao oftalmologista e garantir os recursos para que o aprendizado de Dália ocorresse efetivamente.

A professora Isabel colocou-me na sala de aula dela e deixava todas as primeiras carteiras disponíveis para eu ir alternando de local, pois conforme ela ia escrevendo, eu ia perdendo o campo de visão... Eu tinha que ficar de frente para a escrita. Se ali eu já não conseguia ver, então, tinha que ir mudando, mudando... passando em todas as primeiras carteiras que a professora deixava disponível, até conseguir enxergar.

A disponibilidade para com a adaptação a essa nova realidade de Dália, revelou as múltiplas determinações vivenciadas por essa professora e que a levaram a ver as relações interpessoais de uma forma diferenciada e inclusiva, pois, provavelmente, para ela cada indivíduo é único e suas relações com o outro são uma troca constante e não segmentos estanques para obtenção de um produto final. “Tinham aqueles alunos que, ‘Ah! Por que só para ela?’. E ela dizia: ‘Não é só para ela. É que ela precisa. Se você quiser sentar aí e ela não for usar, você pode sentar, mas quando ela precisar você vai ter que ceder o lugar para ela’”.

Quando o professor aceita a diversidade, ele consegue lidar com a sua sala de aula competentemente e passar para seus alunos a situação com naturalidade, sem conflitos, principalmente, através do diálogo e não da imposição; oferecendo confiança e liberdade necessárias para que ocorra o efetivo aprendizado. Além de que, ao adotar tal postura, permitiu o estabelecimento de vínculos essenciais para que Dália progredisse em seus estudos, passasse a acreditar que era capaz de conseguir atingir seus objetivos e afirmasse e reafirmasse que tudo o que dizia sobre sua dificuldade de enxergar era verdadeiro.

Eu tive uma sensação muito boa! Opa! Alguém acredita em mim! Foi uma sensação muito gostosa! Foi a partir daí que me dediquei muito aos estudos, porque era como se eu tivesse que compensar. Eu iria compensar o que ela estava fazendo por mim! Para ela sentir o valor que eu... – interrompeu a fala com um breve silêncio. Dar um retorno para ela... mostrar que não estava fazendo isso em vão.

Verificando, assim, que a preocupação além de nortear toda a trajetória educacional da professora Isabel, também esteve presente nas atitudes de Dália ao acreditar que por ter tanto apoio de sua professora, deveria compensá-la sendo uma boa aluna e superando todas as expectativas depositadas nela.

Posteriormente a outra experiência traumática com a professora da terceira série, que tinha o “olhar penetrante” e, pode-se dizer, até mesmo discriminador por causa da deficiência visual, Dália teve a oportunidade de um novo recomeço ao cursar pela segunda vez a terceira série, com uma nova professora que marcou a sua vida escolar, com atitudes positivas e significativas para seu aprendizado: “Essa nova professora tinha um semblante diferente, me olhava diferente! Ela fez inclusão, mesmo sem saber nada de inclusão, pois não se falava de inclusão naquela época”.

Com isso, pode-se dizer, com base nos relatos observados e analisados, que tanto a professora Isabel quando a segunda professora da terceira série foram na direção do que se compreende, hoje, como inclusão:

... saber escutar, refletir, apreender a lentidão, dialogar com o outro, para enxergar a diversidade dos saberes, tendo consciência de que somos seres inacabados enquanto estivermos convivendo e experimentando com o outro o prazer da busca do conhecimento. (Magalhães et al, 2005, não paginado)

Mostrando que, ao contrário da ênfase comumente vista e dada ao defeito, ambas as professoras consideraram a deficiência como um processo natural, inerente à criança e que é por intermédio dessa mesma criança, de suas características positivas e de seus pontos fortes que se delinearão as estratégias pedagógicas necessárias para o aprendizado da mesma.

Posteriormente, surgem os desafios do ginásio, atual ensino fundamental II: várias disciplinas, professores com estilos diferenciados, formas diversas de se trabalhar com os alunos, entre tantas outras diversidades e novidades na nova etapa do processo ensino-aprendizagem. Mas, desde o primeiro encontro com o professor JP, de matemática, Dália viu nele um porto seguro, o professor que lhe ajudaria em seus momentos mais difíceis.

... ele intercedeu por mim... O professor Yoko era um professor e não um educador. Em momento nenhum ele sentou perto de mim para saber qual era a minha dificuldade ou para saber se ele poderia me ajudar. Já, o JP, perguntava: “Qual é o seu histórico de vida? Eu tenho que saber”. Ele se interessou!

Discurso que permitiu verificar que, a partir do momento que o professor JP recebeu Dália, em cada ato, em cada explicação, ele buscou conhecê-la para que o verdadeiro aprendizado ocorresse, assim como em um momento de dificuldade com outro professor, Dália teve seu apoio para defendê-la enquanto aluna, mas principalmente enquanto pessoa.

Posto isso e para finalizar o relato sobre a história de vida de Dália, em poucas palavras descrever-se-á as impressões de si sobre si mesma e sobre o ser professor/educador.

Segundo relata, Dália diz que possui duas características marcantes: a primeira refere-se ao sempre contar a verdade para as pessoas, doa a quem doer e independente das consequências que esta possa acarretar e, a segunda, refere-se ao fato de achar-se perfeccionista – questões éticas e posturas adquiridas através de sua constituição familiar, principalmente por intermédio dos ensinamentos e exemplos propiciados pela mãe, ao longo de sua vida.

Nota-se, entretanto, uma terceira característica marcante, o sentimento de diferenciação, que apesar de sê-lo colocado como uma constante em sua vida, ao recordar da história vivida nos bancos da escola, o sentimento vem à tona, a voz embarga e indica que isso ainda é muito vivo em sua memória, apesar de não se abater e sempre encontrar soluções para conseguir driblar a vida: “Eu era diferente!... Mas, mesmo assim, eu conseguia driblar isso e levar para o lado positivo”.

Nas palavras de Adler, referenciado por Vygotski (1997), tal sentimento refere-se, muitas vezes, ao sentimento de inferioridade do complexo psicológico, causado pela menos valia dos órgãos, ou seja, a falta de um dos órgãos conduz a uma compensação que cria uma posição psicológica à criança, na qual o defeito exercerá mais influência sobre o desenvolvimento da mesma, consequentemente surgirá a base para degradação da posição social em função do defeito.

Tais reestruturações podem ser mais bem observadas quando Dália relata que, apesar dos inúmeros percalços que passou durante a vida (professores não inclusivos, fratura no pé, nascimento da filha, tentativa de cursar a faculdade, desejo de ter um emprego, falecimento da mãe e perda da visão), todos lhe serviram de obstáculos e/ou barreiras de incentivo, para que cada vez mais ela se dedicasse aos seus principais objetivos: estudar, formar-se e ter uma profissão. Em suas palavras, ao lembrar-se de tudo que viveu e principalmente do que ganhou com sua formação e trabalho,

Hoje se ouve falar que a criança não está estudando porque o professor não tem especialização... Então, como ele vai aprender ou como o professor vai ensiná-lo?

Na época, de 1970 para 1980, não se falava em inclusão! E, nem por isso deixei de estudar! Nunca me senti uma exceção – posso até ter sido, por alguns professores, mas pouquíssimos. Nunca me senti fora do contexto! Sempre tive meu gueto – o que não é exclusivo da minha pessoa. Então, não entendo porque tanta briga pela inclusão, atualmente. Nos anos de 1970 e 1980 não se falava em inclusão, mas eu participei dela! Mesmo sem ter o Braille, eles não me recusaram, não me mandaram embora! Não falaram, aqui não tem vaga para você!

Revelando, por fim, que as atitudes e as falas de Dália são possíveis de serem transpostas para outras realidades, desde que o sujeito esteja disposto a construir no caminhar de sua história de vida, a história de uma sociedade que atenda as diferenças intelectuais, físicas e emocionais.

 

Algumas considerações

 

Como pôde-se observar ao longo deste artigo, a partir do relato da história de vida fez-se possível observar a metamorfose, que revela o real movimento da identidade. E mais, ao identificar através da fala do narrador/entrevistado seus processos, suas experiências, suas aprendizagens, seus conhecimentos, o seu saber-fazer, suas tensões dialéticas e sua subjetividade, conseguiu-se apreender os sentidos e os significados que este dá a sua vida, mas também como são as suas ações na e pela sociedade.

A história de vida, como descreve Josso (2004), “permite uma interrogação das representações do saber e dos referenciais que servem para descrever e compreender a si mesmo no seu ambiente natural” (p. 39). E, nesse sentido, a história de vida de Dália revelou-se como um constante processo de metamorfose e mesmice, de um paradoxo entre passado e futuro em favor do questionamento presente; observado, principalmente, nas marcas deixadas pelo processo educacional, ora excludente, ora inclusivo.

Outra questão revelada na pesquisa, que leva a afirmar que a história de vida faz-se um método e um instrumento importante de análise, é o fato que, se inicialmente buscou-se apenas compreender como havia se dado a constituição da identidade de Dália diante de seu processo escolar, após as entrevistas e as transcrições foi possível compreender, primeiro, que para não perder a totalidade e as particularidades que levaram Dália a se constituir tal como é, fez-se necessário compreender suas relações com a família, com os amigos, com o ensino, com o trabalho e principalmente com a deficiência. Afinal, a vida não é fragmentada e não se poderia descrever Dália em suas relações escolares, sem descrevê-la com base em suas mediações históricas, em suas interpretações pessoais, com base no espaço e lugar que ocupa em sua família, no trabalho e no social.

Segundo que, na busca de compreender o ir e vir, o manter e mudar, as múltiplas determinações constitutivas de Dália, a literatura estudada anteriormente as entrevistas precisaram ser ampliadas para uma melhor compreensão do sujeito, mas principalmente para uma ampla compreensão das concepções sociais que foram se modificando ao longo dos tempos, permitindo, assim, uma compreensão não somente dos fatos, da realidade presente de Dália, mas também as suas mudanças em um tempo histórico.

E, terceiro, importante à pesquisa, descobrir que mesmo antes da apregoação sobre uma educação de fato inclusiva, muitos professores atuavam como tal, sem mesmo saber o que e como faziam. O que permitiu a Dália que superasse as limitações que a cegueira impõe a tantas outras pessoas na sociedade, assim como demonstrou que uma educação inclusiva é possível e que Dália conseguiu distanciar-se de sua própria condição (não sou cega, nem enxergo; a ceguinha; a cabra cega) e analisá-la, tornando-se primeiramente defensora de uma educação para todos e, consequentemente, trabalhando para a concretização de seus sonhos: atuar e atender crianças com deficiência, tal como ela (mulher e cega), e com dificuldades nos processo de escolarização.

 

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