Antologia: Ecos do Absolutismo Ibérico

Antologia: Ecos do Absolutismo Ibérico

Ecos do Absolutismo Ibérico 

 

                                     Dr.Mário Villas Boas

 

 

Quando, por volta do ano 600, o império romano se esfacelou, a Europa entrou no que se convencionou chamar de "Idade Média". Neste período, os poderes centrais ficaram tremendamente enfraquecidos e o poder de fato passou a ser exercido pelos senhores feudais que criaram núcleos de poder em redor de castelos que construíam e se tornaram, de fato, pelo menos para as pessoas que viviam dentro e em torno desses castelos, as únicas fontes de poder.

 O modelo feudal foi a tônica da Europa até o início das grandes navegações, nos séculos XV, XVI e XVII, embora tenha perdurado em alguns países menos poderosos mesmo depois disso. O primeiro país europeu a romper com o feudalismo foi Portugal. Logo a seguir, a Espanha fez essa mesma ruptura que, só mais tarde se espalhou para países como França e Inglaterra.

O absolutismo – hoje considerado um regime extremamente atrasado – substituiu o feudalismo – que é ainda mais atrasado e ineficiente. Tendo sido o precursor do absolutismo, Portugal foi o primeiro país a experimentar seus benefícios. É difícil hoje imaginar que o absolutismo possa trazer algum benefício, mas, quando comparado ao feudalismo, esse sistema passa a parecer moderno e eficiente.

 A eficiência do absolutismo – comparativamente ao feudalismo então dominante – deu aos países ibéricos uma imensa vantagem em relação aos demais países europeus. Não por outro motivo, Portugal e Espanha foram os grandes protagonistas das grandes navegações e conquistadores, não apenas das Américas mas também da África, Oceania e Ásia. França, Inglaterra e Holanda também participaram da corrida colonialista, mas em grande desvantagem por terem chegado tarde à modernidade, representada, então, pelo absolutismo.

 No século XVIII, surgiu o liberalismo que representa inegável avanço quando comparado ao absolutismo. Inicialmente foi implementado na Inglaterra, logo depois na França. Não por acaso, esses dois países se tornaram potências, superando os países ibéricos e, com isso, tornaram-se os principais protagonistas da chamada segunda corrida imperialista, ocorrida essencialmente no século XIX.

 O mesmo absolutismo que nos séculos XV, XVI e XVII deu aos países ibéricos grande vantagem sobre os demais países europeus tornou-se, a partir do século XVIII motivo não de vantagem, mas de desvantagem a esses mesmos países, ao menos frente à França e à Inglaterra, agora que esses dois países tinham sistemas políticos mais avançados. Contudo, o passado de glórias dos países ibéricos, que foi possibilitado justamente pelo modelo absolutista, criou uma resistência muito grande nesses países de romper com aquele modelo. Como abandonar um sistema que foi justamente o responsável pela grandeza desses dois países? Essa resistência deixou os países ibéricos para trás, à medida que o novo modelo, mais avançado, conseguia adeptos pela Europa.

Na América, o processo foi diferente. Ao conquistar sua independência frente a seu colonizador, os Estados Unidos da América do Norte deu um passo além dos países europeus e passou diretamente para um regime democrático, mais avançado ainda do que as monarquias constitucionais que surgiam na Europa influenciada pelo nascente liberalismo. Quando chegou a vez dos países neo-ibéricos do continente americano se afirmarem enquanto países independentes de suas ex-colônias, os ideais democráticos já implementados na América do Norte estavam muito mais fortes e presentes do que na Europa. Assim, esses países passaram diretamente do absolutismo para a democracia.

Esta passagem abrupta criou contradições muito fortes nos regimes desses países, as quais hoje, quase dois séculos depois, ainda estão por resolver. Quando a democracia foi implementada nos Estados Unidos, este país já tinha alguma tradição liberal herdada do sistema Inglês que já o adotava antes mesmo do processo de independência. Adaptá-las a um regime democrático, onde o povo escolhe seus representantes foi bem menos trabalhoso do que nos países onde a tradição absolutista estava tão presente.

No Brasil, por contingências históricas muito particulares, mas, provavelmente, também porque em Portugal a tradição absolutista era ainda mais forte do que na Espanha, nem sequer isso aconteceu. O processo de independência gerou não uma tentativa de democracia representativa, mas uma monarquia constitucional – ainda mais próxima do agonizante absolutismo do que as distorcidas democracias que surgiam na América hispânica.

Esta análise visa chamar a atenção do leitor de que as democracias ibero-americanas estão fortemente contaminadas com instituições de caráter absolutista, das quais ainda não conseguimos nos livrar devido à força da tradição absolutista que trazemos em nossa cultura. No Brasil essa influência é ainda mais forte do que nos países hispânicos. Nossa cultura ibérica nos habituou a tal ponto com tais entulhos autoritários – que, ao contrário do que afirmam os opositores do período militar, não são herança dos governos militares do período 1964-85, mas sim fruto de uma herança muito mais antiga, que remonta ao século XIV, quando nossos ancestrais ainda viviam na Europa – acabam passando despercebidos, até mesmo dos operadores do Direito. 

Este artigo é o primeiro de uma série que será publicada aqui. Os próximos artigos identificarão alguns desses entulhos autoritários. Devido à nossa grande convivência com eles, os mesmos passam por absolutamente compatíveis com o regime democrático. Não são. Na verdade, eles são a própria negação da democracia. Um entrave ao implemento de um regime verdadeiramente democrático.

O objetivo desta série de artigos é sensibilizar, em primeiro lugar os operadores do Direito, que têm melhores condições de compreender o sentido técnico dos mesmos e, em segundo lugar a população em geral, da absoluta necessidade de removermos esse entulho autoritário de nossas instituições a fim de que consigamos implementar uma democracia verdadeira. Não será nada fácil removê-lo. Mas o primeiro passo para isso é a identificação do mesmo, o que pretendo fazer nos próximos artigos. O segundo é a criação da consciência da necessidade da mudança, o que espero que meus leitores façam, se eu for bem sucedido em minha missão.