A Poesia como a Primeira Manisfestação de Fala do Homem

A Poesia como a Primeira Manisfestação de Fala do Homem

A POESIA COMO A PRIMEIRA

MANIFESTAÇÃO DE FALA DO HOMEM

 

HÉLDER MOURA

 

Resumo

 

Uma das principais vantagens da evolução do homem está certamente relacionada ao uso da fala como elemento de comunicação para transmissão de narrativas e ideias, e especialmente de compreensão do mundo e de si próprio, ante a estranheza que sempre permeou sua História na Terra. E é interessante observar como a fala surgiu, não talvez para expressar as primeiras necessidades do homem, mas os sentires mais arcaicos, que os gestos não tinham a capacidade de exprimir. Então, a primeira língua surgida terá sido uma língua de poesia.

 

Palavras-chave: Homem primitivo. Origem das línguas. Fala. Linguagem poética.

 

Abstract

 

One of the main man evolution of the advantages is certainly related to the use of speech as a communication element for transmitting stories and ideas, and especially understanding of the world and of himself, at the strangeness that has always permeated its history on Earth. And it is interesting how the speech came not perhaps to express the basic needs of man, but the most archaic you feel that the gestures had not the ability to express. So the first language which appeared to have been a poetry of language.

 

Keyword: Primitive man. Origin of languages. Speaks. poetic language.

 

 

Introdução

 

Os primeiros hominídeos surgiram na Terra entre três e um milhão de anos atrás, mas o espécime do que se convencionou chamar de homem moderno data de aproximadamente 200 mil, enquanto, para a antropologia, o homem verdadeiramente inteligente, tal como a ciência especifica atualmente, teria surgido “apenas” há 12 mil anos. Entretanto, presume-se que o homem tenha começado a falar, ou emitir sons minimamente articulados, há 80 mil anos. E as primeiras linguagens constituíram-se formalmente há pouco mais de quatro mil anos.

O filólogo suíço Frederick Bodmer pontuou em seu livro “O homem e as línguas – guia para o estudioso de idiomas” (1970):

 

Nada conhecemos acerca da fala humana no período em que um antropoide ereto pela primeira vez fez o uso de sons, para cooperar no trabalho ou na defesa, até a época em que se começou a ser escrever... Podemos dizer com certeza de que o homem primitivo empregava muitos gestos para transmitir aquilo que desejava dizer. (Pag.74)

 

Há uma vertigem do tempo na história da fala que se desenrola por milhares de anos. Mas, o fato é que a fala, a partir dos primeiros sons, evoluiu para a formatação de uma linguagem, com um mínimo de identidade e, podemos dizer, regras que, obviamente, não surgiram por geração espontânea, mas talvez movida por um processo de tentativa e erro. A necessidade de comerciar experiências e mercadorias, certamente, levou ao aperfeiçoamento desse mecanismo nas primeiras línguas.

Interessante as conclusões a que chegou o físico Leonar Mlodinov, em “O andar do bêbado” (2008), quando postula que os processos que estabelecem a evolução e presidem os fatos de nossa vida estão vinculados a um aspecto aleatório, mas firmemente associados ao número de tentativas (Pág. 230). Ou seja, quanto mais vezes o homem primitivo tentou se exprimir pela fala, mas ele aperfeiçoa (e ainda segue aperfeiçoando) sua capacidade de traduzir com maior precisão sobre o que narra, o que sente e o que faz sentir.

Mas, uma indagação se impõe: quais terão verdadeiramente sido as primeiras palavras pronunciadas pelo homem primitivo no surgimento da fala? Ou, talvez melhor, o que o homem primitivo quis dizer quando usou a fala pela primeira vez? É aceitável que a primeira comunicação entre os homens primitivos se manifestou através de gestos. Sim, porque os gestos estão mais acessíveis. Gestos com as mãos são praticamente instintivos. Até com meneios do corpo.

Mas, em algum momento, com certeza, o homem usou a fala, seja para reforçar os gestos, seja por ter descoberto, de alguma forma, um instrumento infinitamente mais versátil para se comunicar, com o uso de sons. Ele poderia agregar sons aos gestos para narrar uma caçada, por exemplo. Ou o encontro com outros homens até então desconhecidos, já que essas comunicações iniciais certamente se deram entre os membros de uma mesma família.

Assim, com gestos, os homens podiam indicar algumas necessidades elementares, como a fome. Bastava apontar a comida. Ou a bebida. Ou talvez nem fosse necessário comunicar. Nesse sentido, os sons não seriam absolutamente imprescindíveis para externar essas necessidades. Os gestos resolveriam. Havia uma gama de possibilidades de gestos capaz de manifestar essas demandas mais básicas. Mas, como pronunciar um medo, por exemplo? Ou, de que forma poderia o homem primitivo comunicar um sentimento, apenas com o uso de gestos? 

Alguns pesquisadores entendem que um dos primeiros sentimentos dos homens primitivos terá sido a solidariedade. Há traços desse comportamento até mesmo entre os animais. Assim, se um homem encontrava outro de sua espécie ferido ou morto, certamente seria tocado por um sentimento de solidariedade. E apenas com gestos não seriam capazes de externar o que afloravam em seus sentidos. Os gestos teriam apenas o objeto de sinalizar, mas não externar questões da ordem de sua sensibilidade perante um semelhante.

A solidariedade como elemento nascido de alguns dos instintos humanos mais básicos relacionados à necessidade de sobrevivência, desejo sexual, competição, agressão, e talvez associada a alguma necessidade algo ainda incompreensível para aqueles homens, algo da ordem do divino. Algo que, obviamente, apenas os gestos não tinham a capacidade de traduzir. Os gestos permitiam uma comunicação rudimentar, e atendia às primeiras necessidades, mas certamente não cumpriam o papel de aproximar os homens, numa liga mais forte relacionada aos sentimentos.

Além do mais, os gestos não apresentam por si a capacidade de aproximar os homens. Talvez até mesmo de afastar. Para satisfazer suas necessidades básicas, como comer ou beber, o homem primitivo certamente não precisava do outro. Mas, não poderia falar com outro à distância. Então, é presumível que, diferente dos gestos, a fala foi um fator de aproximação e socialização maior do homem, num ambiente ainda caótico do ponto de vista dos afetos.

O que nos leva diretamente ao que propunha Jean-Jacques Rousseau, em “Ensaio sobre a origem das línguas” (2010) quando postulou:

 

A linguagem dos primeiros homens como línguas de geômetras e vemos que foram línguas de poetas... Os primeiros motivos que fizeram falar o homem foram paixões, suas primeiras expressões foram tropo. A linguagem figurada foi a primeira a nascer, o sentido próprio foi o último a ser encontrado.” (Pag.103-105)

 

Assim sendo, é lícito imaginar que as primeiras falas eram articuladas de modo figurado. Ou seja, de alguma forma, elas traduziam o que o sentimento deveria representar. Ainda que não compreendessem o sentimento em si. O homem primitivo agia por solidariedade, é compreensível, mas não sabia o que era a solidariedade. As primeiras falas apenas tentavam representar o que os sentidos experimentavam. Daí, porque a língua que ser necessariamente figurada.

 A considerar essa observação como verdadeira, devemos entender as primeiras falas como integrantes de uma linguagem figurada, tal como a linguagem dos poetas. Uma língua constituída basicamente para externar sentimentos, ou paixões, como fala JJ Rousseau (2010). O que não deixa de ser surpreendente, na medida em que o senso comum parece sinalizar que o surgimento da língua tenha sido para atender a uma demanda particular para manifestação de necessidades aos parceiros. Entretanto, a lógica parece trilhar outra direção de pensamento.

Teríamos, então, uma comunicação que se dava através de gestos, para relatar alguns fatos do cotidiano de suas vidas, associada a uma comunicação por fala, que agregava sentido às histórias, capaz de atingir mais fundo nos interlocutores. Não apenas relatavam uma história, mas acrescentavam uma espécie de “interpretação” poética dos acontecimentos, explorando um terreno, à época, ainda não prospectado dos sentires, em suas diversas matizes.

É possível imaginar então que homem primitivo começou a se compreender a partir da compreensão dos seus sentimentos, traduzidos pela fala figurativa, associada ou não a narrativas, mas capazes de emprestar um sentido aos acontecimentos, além de contextualizar o humano perante o mundo. Assim, a fala, com sentido poético ai compreendido como aquelas palavras que atingem os pontos mais abissais do homem primitivo, terá sido o despertar da compreensão do homem de sua aventura na Terra, em face do outro e de algo superior, que certamente levou à curiosidade em relação ao divino.

Compreender sua inter-relação com os demais, com os animais, plantas, com a Terra e, finalmente, com o divino que, para ele, deveria permear a tudo, senão o mundo perderia as suas explicações mais imprescindíveis ao aperfeiçoamento da própria espécie, certamente como um imperativo da seleção natural. E, neste sentido, a fala surge como uma importante vantagem evolutiva.

Seria possível admitir a evolução humana, tal qual postulou Charles Darwin, em Origem das Espécies (2004), sem o concurso da fala? Para Darwin, “todos os seres vivos estão lutando, por assim dizer, para se apoderar de cada lugar na economia da natureza” (Pág 165). Essa luta certamente não seria possível sem o concurso da fala, ou ainda mais fundo, sem o advento da língua figurada dos poetas, capazes de traduzir não apenas os fatos, mas também e especialmente a alma do homem, sua capacidade de compreender o passado e projetar o futuro. Ou seja, o homem como protagonista de sua História.

Para Santo Agostinho, em Confissões (2014), era no seu mais íntimo ser que o homem certamente encontraria a resposta para suas inquietações, onde se poderia entender a si próprio também, naquilo que poderia compreender. “Há, porém, coisas no homem que nem sequer o espírito que nele habita conhece” (Pág. 241) Santo Agostinho põe, obviamente, o homem como elemento de segunda grandeza, imediatamente abaixo do divino, ou do Criador.

Oportuno observar ainda a importância que Lacan (1998) sempre deu à fala, como elemento de conhecimento do mundo e de si próprio. Para Lacan, é a palavra que o real significante e que dá existência às coisas, e permite, não apenas a conscientização do homem perante o mundo, como a essência do autoconhecimento, e o capacita a entender a subjetividade da vida, o importante é que saber-se integrante de um sistema holístico, mas o saber sobre os seus atos, e, claro, sobre sua História.

Nesse particular aspecto sobre a importância da fala, ou da palavra, vale a pena considerar o que advogou Elias Canetti, em seu livro “A consciência das palavras” (2011) quando retrata o curioso caso de um poeta anônimo, revelando toda a sua amargura quanto ao sentido de ser poeta. Ele diz com amargura que “fosse eu realmente um poeta, teria necessariamente podido impedir a guerra” (Pág. 312).

O poeta que externa sentimentos e, tanto quanto o homem primitivo ao descobrir a fala (figurada, no caso), entendia que a magia das palavras, por tratar de paixões, poderia alterar o curso de suas vidas. As palavras como elemento de magia da existência.

Canetti, na tentativa de tentar compreender a química secreta das palavras e especialmente compreender o que de fato vem a ser um poeta, também escreveu, a propósito do autor anônimo, angustiado por não poder realmente evitar uma guerra apenas com a força de seus versos:

 

Ora, se as palavras tanto podem, porque não se haveria de poder impedir com elas a guerra? Não é absolutamente de espantar que alguém mais que mais do que os outros lida com elas esperasse também mais de sua eficiência do que os outros. (Pág. 313)

 

É também notável o que escreveu Alberto Manguel, em seu livro “Uma história da leitura” (1997), a respeito de uma lenda em torno do Sefer Yerizah, texto hebraico (século VI), que postula a criação do mundo a partir de 32 caminhos secretos, que seria os dez algarismos e as 22 letras, a partir dos quais tudo o mais foi criado no mundo, e cita

As três camadas do cosmo – o mundo, o tempo e o corpo humano... A chave para compreender o universo está em nossa capacidade de lê-los (os 32 caminhos secretos) adequadamente e dominar suas combinações. (Pág. 21)

 

E então, para demonstrar a força das palavras, o autor narrou, de forma impressionante, sobre os livros da época que abordavam os primórdios da criação, para demonstrar como dar vida a alguma parte, numa imitação da potência do Criador:

 

Segundo uma lenda do século IX, Hanani e Hoshaiah, profundos conhecedores do Talmude, estudavam uma vez por semana o Sefer Yerizah e, mediante a combinação correta das letras, criavam um bezerro de três anos que então comiam no jantar. (Pág. 21)

 

E vemos, por fim, a importância da primeira fala, ou da manifestação figurativa ou poética em última instância, como a distinção mais arcaica da história da língua, como elemento intrínseco e inseparável da História do homem. O que remete a Aristóteles, em “Poética” (2014):

A obra do poeta não consiste (apenas) em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais podiam acontecer, possíveis do ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade.” (Pág. 30)

 

E aqui necessidade ganha o contorno mais forte, como uma adequação à vantagem evolutiva que o homem adquiriu com o uso da fala, seu instrumento mais importante diante da perplexidade de sua aventura na Terra.

 

 

Conclusão

 

A origem da língua remete diretamente à necessidade que o homem primitivo tinha para estabelecer laços sociais, através de suas comunicações, que compreendiam suas necessidades mais elementares, mas também outros elementos agregadores como a expressão de suas narrativas, ideias e, especialmente, seus sentimentos, apesar de, certamente, ainda não terem consciência do que seria o ato do sentir.

Mas, observações a partir dos estudos de grandes pesquisadores, filólogos e antropólogos, parecem sinalizar que as primeiras comunicações do homem primitivo não se davam pela fala, mas por gestos, porque para atender necessidades básicas, comer ou beber, não se exigia uma comunicação mais complexa, que veio com a fala. Os gestos não promovia necessariamente a aproximação os homens. A fala, sim.

A fala teria surgido, no momento seguinte, para exprimir os sentimentos. Assim sendo, essa língua teria que ser necessariamente figurativa ou, em última instância, uma língua poética. E foi a partir dessa língua poética que o homem primitivo pode apresentar suas narrativas e ideias, agregando elementos de compressão do mundo, de si próprio e de uma consciência do divino.

Uma vantagem evolutiva determinante para a História do homem na Terra. O que nos leva a concluir que essa História tem origens na necessidade poética que o homem traz consigo, desde seus primórdios, como elemento intrínseco para o estabelecimento da compreensão, ou tentativa de compreensão, de sua aventura como homem.

 

Bibliografia

 

AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. Confissões/Santo Agostinho. Trad. J. Oliveira e A. Ambrósio de Pina. Rio de Janeiro: Vozes. 2014.

ATISTÓTELES. A poeta clássica/Aristóteles, Horácio, Longino. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix. 2014.

BODMER, Frederick. O homem e as línguas. Trad. Aires da Mata Machado Filho e outros. Porto Alegre: Editora Globo. 1960.

CANETTI, Elias. A consciência das palavras. Trad. Márcio Suzuki e Herbert Caro. São Paulo: Editora Schwarcz. 2011.

DARWIN, Charles. A origem das espécies. Trad. John Green. São Paulo: Martin Claret, 2004.

LACAN, Jacques. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Editora Schwarcz. 1997.

MLODINOV, Leonard. O andar do bêbado. Trad. Diego Alfaro. São Paulp: Zahar. 2008.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Trad. Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo: Editora da Unicamp. 2010.