A greve dos servidores do INSS e os direitos fundamentais

A greve dos servidores do INSS e os direitos fundamentais

A greve dos servidores do INSS e os direitos fundamentais

 

Marco Aurélio Serau Junior[1].

 

A recente notícia de que os peritos médicos também aderiram à greve dos demais servidores do INSS enseja preocupação quanto aos possíveis impactos sobre as aposentadorias e outros direitos dos segurados. Movidos por essa preocupação, apresentamos este reflexão sobre a greve dos servidores do INSS, à luz dos direitos fundamentais.

Em primeiro lugar vamos frisar que os direitos fundamentais são normas jurídicas diferenciadas.

Com substrato em autores como Dworkin e Alexy, a doutrina divide os direitos fundamentais em regras e princípios. As regras são normas jurídicas cuja previsão é mais concreta, como, por exemplo, a regra de que a aposentadoria por idade ocorre aos 60 ou 65 anos. Os princípios, por sua vez, são normas jurídicas mais abstratas e flexíveis, como, v.g., o princípio da universalidade da cobertura e do atendimento na Previdência Social, ou o princípio do equilíbrio financeiro e atuarial, que estruturam todas as ações da política pública previdenciária.

É claro que essa divisão apresentada nesses termos enxutos não passa de uma simplificação hermenêutica. A interpretação das normas de Previdência Social é mais complexa e justamente uma das principais causas do conflito previdenciário, provocando uma enxurrada de ações judiciais sobre essa matéria[2].

Além disso, os direitos fundamentais são normas jurídicas diferenciadas porque suscitam, em seu processo de interpretação de sentido, aquilo que se convencionou chamar de colisão de direitos: a aplicação de um determinado direito fundamental não exclui completamente a aplicação de outro direito fundamental. O principal exemplo que encontramos nos Manuais de Direito Constitucional é o caso do direito fundamental à liberdade de expressão e liberdade de imprensa, que se chocam constantemente com o direito fundamental à privacidade e intimidade: quais são os fatos que os jornalistas podem expor e noticiar e que informações devem ser preservadas em nome da intimidade?

A greve dos servidores do INSS propicia a mesma preocupação sobre colisão de direitos fundamentais: em que medida os servidores públicos do INSS podem exercer seu direito fundamental de realizar greve e lutar por seus direitos remuneratórios e o quanto isso causa impacto nas aposentadorias e demais direitos dos segurados, devendo, portanto, sofrer limitação?

Essa questão é crucial e complexa, e procuraremos expor alguns parâmetros a respeito.

Em primeiro lugar, deve-se reconhecer que os servidores do INSS possuem direito à realização de sua greve em busca da melhoria de sua condição remuneratória.

A Constituição Federal de 1988 (art. 37, VII) estabelece que a greve no serviço público será permitida nos termos de lei específica. Esse dispositivo constitucional ainda não se encontra regulamentado, e o Supremo Tribunal Federal, no Mandado de Injunção nº 708, julgado em 25.10.2007, considerou que, enquanto persistisse essa omissão legislativa, seria o caso de aplicar a Lei no 7.783/89, aplicável à iniciativa privada.

De outra parte, deve-se assinalar que a negociação coletiva no setor público, em que pese a incorporação da Convenção nº 151 da OIT ao Direito brasileiro, ainda é incipiente e sequer se encontra regulamentada.

Os estudiosos do processo administrativo previdenciário, como Adriano Mauss e Alexandre Triches, bem sabem que uma das causas de problemas nos pedidos de concessões de benefícios previdenciários e no atendimento à população em geral reside na má qualificação profissional dos servidores do INSS. Uma das principais fontes de má qualificação é justamente a baixa remuneração propiciada pelo órgão previdenciário, que deixa de ser atraente para profissionais mais qualificados ou se torna mero trampolim para carreiras estatais mais vantajosas economicamente.

Sob esse ponto de vista, os servidores do INSS possuem legítimo e constitucional direito de greve, em busca de melhores condições salariais e profissionais.

Entretanto, esse movimento paredista provoca inegáveis transtornos à população e inequívocos prejuízos aos cidadãos. Os direitos previdenciários dos segurados e dependentes são, do mesmo modo, legítimos e constitucionais direitos fundamentais[3].

De fato, os direitos previdenciários possuem previsão constitucional e, o mais importante, dizem respeito a temas sensíveis da pessoa humana, ligados à manutenção de sua dignidade: morte de um familiar que provê o sustento familiar; doença incapacitante para o trabalho; idade avançada, exercício de atividade laboral em prejuízo mais acentuado à saúde ou integridade física (atividade especial).

O exercício de greve pelos servidores públicos ainda não foi regulamentado (para toda a Administração Pública) e não se encontra bem resolvido em seus limites. Isso vale também no caso do INSS, mas aqui o exercício do direito de greve tem sido bastante drástico: perícias médicas não realizadas; agências fechadas; benefícios previdenciários que não são analisados.

O exercício do direito de greve pelos servidores públicos é sempre polêmico, mas no campo previdenciário é realmente complexo em termos de impacto nas relações sociais, pautadas por questões urgentes, alimentares.

Eventuais prejuízos a direitos dos aposentados e pensionistas podem ser reparados na esfera do Poder Judiciário, a quem sempre se pode recorrer, nos termos da Constituição Federal, no caso de lesão ou ameaça de lesão a direitos (art. 5º, inciso XXXV)[4].

 

 


[1] Mestre e Doutor em D. Humanos (USP). Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas – novas perspectivas teóricas e práticas (Forense, 5ª edição) e Manual dos Recursos Extraordinário e Especial (Método).

[2] A esse respeito, desenvolvemos melhor o assunto em nossa obra mais recente: Resolução do conflito previdenciário e Direitos Fundamentais (LTr, 2015).

[3] Esse argumento eu desenvolvi em especial em minha Dissertação de Mestrado, que saiu sob a forma de livro: “Seguridade Social como Direito fundamental material”, Juruá, 2011, 2ª edição.

[4] Para maiores referências sobre o acesso à justiça na área previdenciária, confira-se o nosso: Curso de Processo Judicial Previdenciário, 4ª edição, S. Paulo: Método, 2014.